terça-feira, dezembro 11

Numa era dominada pelo consumismo e pelo hedonismo, há tempo para parar, pensar e dar um outro sentido à vida?

Numa era dominada pelo consumismo e pelo hedonismo, há tempo para parar, pensar e dar um outro sentido à vida?

A fé em Deus e na Igreja empalidece.


A procura de novas crenças assume múltiplas faces.

Mas nem sempre se revela um caminho fácil e de resultados instantâneos como se espera.


Por Clara Soares

Era mais uma noite fria de Dezembro.


Catedrais do consumo à pinha, veículos em fila, caras inexpressivas ou ansiosas, evidenciando cansaço após mais uma jornada laboral. Raro era o transeunte que não tivesse passos apressados, desdobrando-se em frenéticas entradas e saídas de lojas, tendo em mente apenas um objectivo: as compras natalícias.

Pela primeira vez na vida, decidi não cumprir o ritual e optei por deixar o estado de sítio em que a capital se transforma a partir do meio do mês – e que nem as belas iluminações que ornamentam as ruas conseguem disfarçar – e tirar uma semana de férias. Na véspera da partida comprei algumas lembranças no comércio local e rumei à Costa Nova, em Aveiro. Ali, instalei-me no centro de espiritualidade Jean Gailhac, para um retiro de silêncio e oração orientado pelo padre jesuíta Vasco Pinto Magalhães. Nunca tinha feito nada do género, mas após um ano particularmente exigente a vários níveis – profissional, familiar e pessoal – ousei aventurar-me, a convite de uma amiga, por um caminho bem diferente do proposto pela sociedade de consumo.

Foi há dois anos e ainda hoje me lembro do bem que me fez permitir-me parar, desligar do bombardeamento informativo e das rotinas a que sempre estive habituada nesta quadra. A minha curiosidade pela condição humana e propensão para o questionamento conduziram-me até à psicologia e ao jornalismo que, a meu ver, colidiam muitas vezes com os pouco palpáveis meandros da fé.

Apresentei-me como leiga e entreguei-me à experiência do retiro. Os primeiros dias foram difíceis. As caminhadas fora do centro – diariamente percorria alguns quilómetros a pé pelas dunas, junto ao Atlântico, em diálogos internos nem sempre serenos –, os almoços e jantares caseiros ao som de música clássica e o facto de me sentir acolhida entre os outros participantes do grupo, nas orações e palestras, não atenuaram a sensação de travessia no deserto. Era como se me tivesse despido de parte da minha personalidade e extensões materiais que a sustentavam (incluo aqui o computador com ligação à net, o telemóvel, o carro e o leitor de CD e a estação de rádio que sempre me acompanha em dias ditos normais).

Para além das descobertas que fiz, sublinho a capacidade de olhar para os Evangelhos com outra abertura e a possibilidade de abraçar em mim vulnerabilidades e forças, assistindo ao processo de reequilíbrio silencioso entre elas. Aprendi naqueles dias a aceitar o que não controlo no quotidiano e a confiar nos trilhos da vida, apesar de nem sempre os compreender na totalidade, por não serem feitos à medida do meu querer. Expandi as minhas próprias fronteiras e mais consciente do valor de prazeres simples que tomava como garantidos e sem valor.

Foi neste contexto que assisti ao fenómeno editorial de sucesso do ano, o livro O Segredo (editora ASA), da produtora australiana Rhonda Byrne. No recém-lançado formato em DVD no nosso país, em nova quadra natalícia, a autora apresenta uma ficção documental ao estilo do filme Código Da Vinci (inspirado no livro de Dan Brown), onde os depoimentos de nomes sonantes da filosofia, da física e da psicologia se misturam com cenas simuladas, fruto dos testemunhos de gente que venceu na vida, desde doenças a condições de escassez material e relacional. Pelo meio destacam-se citações famosas de pensadores da História, de Newton a Buda, passando por trechos da Bíblia e ensinamentos de Platão. E um conceito unificador que a empresária espiritual Rhonda diz ter sido a sua grande descoberta: a lei da atracção.

Em que é que este livro se demarca da onda de obras de auto-ajuda que proliferam no mercado e enchem as prateleiras de quem os compra? O que tem de especial este conceito, para atrair milhões de pessoas em todo o mundo (O Segredo circula em mais de 33 países e as vendas não param de crescer) e ser a base de centenas de workshops promovidas por empresários, terapeutas de medicinas complementares e grupos da Nova Era (correntes esotéricas, em voga na última década)?

Espiritualidade chega às empresas
Uma pesquisa coordenada por Arménio Rego, do departamento de Economia da Universidade de Aveiro, intitulada Espiritualidade nas Organizações, Positividade e Desempenho (1), sugere, com base numa amostra de 254 trabalhadores de empresas brasileiras, como os factores “espirituais” explicam o empenho organizacional e a produtividade.
As dimensões estudadas que promovem o desempenho são:
Sentido de comunidade na equipa
Alinhamento da pessoa com os valores da empresa
Sentido de préstimo à comunidade
Alegria no trabalho
Oportunidades para a vida interior
Este e outros estudos recentes atestam a necessidade que se faz sentir, cada vez mais, no mundo competitivo e tecnocrático, de encarar o indivíduo como ser racional, mas também emocional e espiritual.

(1)Revista Comportamento Organizacional e Gestão, 2007, vol. 13, n.º 1, 7-36.
Comecemos pela abertura do filme: “Eu estava a atravessar uma crise financeira, o meu casamento tinha chegado ao fim, a minha vida estava um caos.” Na primeira pessoa, Rhonda conduz o espectador pela sua viagem em busca de um sentido para a vida. O ponto de viragem acontece quando lhe chega às mãos um livro com mais de 100 anos intitulado A Ciência de Ficar Rico. A partir daí, tudo muda e num curso que ela decide frequentar sobre este tema, conhece as pessoas que viriam a fazer parte do projecto, que retoma ideias de pensadores clássicos e referências das principais tradições religiosas para mostrar que todos falam do mesmo segredo: se pedirmos ao universo – feito de energia – aquilo que queremos, ele funcionará a nosso favor.

Em resumo, pode ler-se no site oficial, “cada ser humano tem a capacidade de transformar fraquezas e sofrimento em força, poder, paz, saúde e abundância”.

Tratar-se-á do poder da fé? E em que plano? De acordo com este livro, ela reside no poder da mente, que pode sintonizar-se com determinados comprimentos de onda: pensar coisas negativas é caminho certo para as atrair no quotidiano. Porém, se a mente se focar noutra vibração, tudo pode mudar, desde que se acredite. E não é preciso seguir qualquer religião, tudo depende do próprio e da descoberta da lei da atracção. Os esforços para obter da autora algumas respostas às minhas perguntas, ao longo de algumas semanas, foram vãos (cheguei a questionar-me se tal fracasso era devido à minha incapacidade de acreditar o suficiente para ter uns minutos de tempo de antena).

Nova questão: como lidam as pessoas com esta mensagem? Será que conseguem o carro ou a casa da sua vida, o parceiro ideal, o emprego certo? E caso o universo não atender ao pedido, por mais que se acredite nele?

Uma simples busca na Internet conduziu-me a inúmeras propostas de cursos para particulares e empresas, também em Portugal. Alexandra Almeida, de 34 anos, formadora e técnica de coaching no Espaço Dharma Vida (www.dharmavida.com), em Loures, recorre ao livro e ao filme como ferramentas formativas nos cursos de meditação dirigidos a grupos.

Segredo é uma reciclagem de conhecimentos antigos que há muito são usados para ajudar as pessoas a concretizarem a visão que as realiza, o seu potencial.” Porém, adverte que nem tudo se resume à lei da atracção, “há todo um sistema de crenças que condiciona o processo, a capacidade de acreditar em algo que ainda não se manifestou mas tem condições para tal”. Não desistir é o lema. Visualizar, focar a mente e estar centrado e relaxado são ingredientes essenciais para atingir objectivos de vida, sejam profissionais (nas empresas) ou pessoais (nos relacionamentos e metas individuais), como atestam os estudos sobre inteligência emocional do psicólogo americano Daniel Goleman, e de inteligência espiritual, baseados nas investigações da física e filósofa americana Dana Zohar.

Esmerinda Ferreira, de 46 anos, frequentou um destes cursos numa altura em que atravessava uma crise financeira e pessoal e a mensagem não podia vir em melhor altura. A antiga catequista, que se revê na filosofia cristã mas não é católica, diz ter-se encontrado a si mesma quando começou a pôr em prática os princípios da psicologia positiva no quotidiano, focando-se no poder da intenção, naquilo que se quer (em vez daquilo que não se quer). “Para mim, todo o universo é Deus e Deus é energia. O importante é sintonizar-me com ela.” Hoje tem uma nova carteira de clientes e uma nova empresa e deve-o, assegura, ao processo de autoconhecimento. “Estou convicta de que o sucesso das obras de auto-ajuda como esta tem a ver com as mudanças sociais, em que a família e o trabalho deixaram de ser uma fonte de realização; é preciso que cada um descubra o seu próprio modelo de estar na vida.”

Estes princípios encontram-se ainda nas correntes espirituais não religiosas como a psicologia transpessoal e a astrologia psicológica. Aqui, as filosofias ancestrais servem de base a novas linhas de pensamento associadas aos estudos sobre consciência.

O Segredo…
E as suas revelações

O best seller deve a sua popularidade ao conceito gráfico apelativo e ao formato livro+DVD, que permitem uma leitura fácil e pronta a servir. Conheça de perto as premissas da lei da atracção.
Todo o universo é feito de energia e se se alinhar com ela pode usá-la a seu favor
Cada pensamento tem uma frequência energética
Quem fala de doenças tem doenças, quem fala de abundância e prosperidade tem abundância e prosperidade
Cada pessoa é como íman – atrai e torna-se naquilo que pensa e sente
Você cria a sua realidade (para o melhor e para o pior)
Estar grato pelo que tem é o primeiro passo para enriquecer a sua vida
Decida o que quer, acredite que pode tê-lo, que o merece e que é possível para si
Aprenda a parar e a focar a sua atenção no que quer, em vez daquilo que não quer
Os seus pensamentos são dignos de si? Se não, agora é o momento de mudá-los.
Juliana Estevez, de 29 anos, psicóloga e astróloga na Essência do Ser (http://essenciadoser.net/), em Carcavelos, explica porque é que a quadra natalícia este ano assume contornos decisivos nos planos da consciência individual e colectiva. “Os últimos meses de 2007 são marcados por uma conjunção dos planetas Júpiter e Plutão a 28 graus de Sagitário (a última vez que ocorreu foi em 1023); esta localização é identificada como o centro da nossa galáxia e a conjunção afecta por isso toda a humanidade.” Na prática, este Dezembro traz consigo a oportunidade de transformarmos crenças e valores profundos, de intervir intencionalmente naquilo a que chamamos destino. Por isso não estranha o sucesso de O Segredo, na medida em que “mostra como podemos ser co-criadores das nossas vidas e, simultaneamente, da realidade do planeta”.

De volta à questão central, a fé e porque necessitamos de acreditar e confiar em algo maior que nós – seja num grupo, numa ideologia ou numa religião –, ela revela-se quase sempre em períodos críticos, embora haja quem tenha um trajecto linear. É o caso de Carlos Gil, de 43 anos e técnico comercial no concelho de Cascais, que diz ser um homem de fé e prendado pela vida desde que se conhece. Nascido em Luanda e filho de pais católicos, assume a sua religiosidade sem preconceitos e faz peregrinações regulamente (www.peregrino.org). As duas ou três caminhadas que faz anualmente são uma forma privilegiada de religar-se com o divino. “Se Deus existe, é quando caminho que estou com ele.”

Da sua história de vida, recorda com especial atenção os períodos de crise, no pós-revolução, quando a família veio sem nada para Portugal. “Passámos do 80 para o 8, deixou de haver mordomias e luxos, não tínhamos sequer mobília, mas a minha mãe fazia de tudo uma festa e foi com ela que aprendi que a alegria de viver não tem directamente a ver com o que nos acontece.” Carlos lembra ainda os lugares por onde já peregrinou: Peru, Angola, Santiago de Compostela e Fátima. “Pratico o chamado voto de pobreza, embora reconheça o prazer das coisas mundanas. Levo uma vida simples com a minha família e não a sacrifico por nenhum trabalho do mundo.”

Em sua casa não se vê televisão porque “passa uma imagem distorcida de um mundo violento, triste e sem alma”. A este propósito, refere um Natal remoto, em que se esqueceu das prendas para os dois filhos no carro e se levantou de manhã para ir buscá-las, dando com o veículo assaltado e pedaços de papel de embrulho no chão. Contou aos filhos que um senhor tinha levado os presentes, ao que eles responderam: “Se calhar o filho desse senhor não tinha prendas e assim vai ficar contente.” Nada o poderia ter deixado mais comovido do que aquela atitude dos filhos, onde ele se revê com gratidão. A sua máxima consiste em não estabelecer condições para ser feliz, até porque “o que é significativo nas nossas vidas acontece por acaso e há que aceitá-lo sem criar necessidades desproporcionadas”.

Paulo Borges, de 47 anos, presidente da União Budista Portuguesa e membro da comissão coordenadora da recente visita do Dalai Lama a Portugal, partilha de uma visão semelhante e vai mais longe quando afirma que “a tecnologia e a comunicação global podem distrair-nos e cultivar falsas expectativas, mostrando-se impotentes para resolver as nossas inquietações fundamentais”. Na perspectiva budista, a fé não é a adesão emocional a uma doutrina mas antes uma confiança que conduz a libertação do sofrimento e ao despertar da consciência para a realidade profunda das coisas. “Tal é possível através da prática da meditação e da disciplina ética.” E se esta tomada de consciência e despertar para outros níveis de conhecimento é mais provável em períodos específicos da vida – “para a maioria das pessoas, só o sofrimento leva à busca de novos horizontes” – nem sempre tem de ser assim: “É fundamental não estarmos dependentes dos ciclos psicobiológicos para descobrir a nossa natureza mais profunda.”

Não é propriamente uma novidade que “a vida é difícil” (como afirma o psiquiatra católico americano Scott Peck no seu livro O Caminho Menos Percorrido). O dado novo, na sociedade globalizada, é o número crescente de ateus que tem feito notícia em jornais de referência como o The Sunday Times ou a Wired (esta publicação dedica um número inteiro ao tema). No universo tecnológico, que idolatra a ciência e o conceito de controlo pessoal, a dúvida sistémica é premiada. Olhando este fenómeno de perto, chega-se à conclusão que os ateus também têm convicções: segundo eles, os crentes são crédulos e não aceitam a finalidade da morte.

Espiritualidade virtual
Circular nas auto-estradas da informação e descobrir pontos de paragem obrigatórios é um ritual que cada vez mais crentes não dispensam.

Sugestões de pesquisa on-line:
Rosário digital
Retiro eucarístico virtual

Sites a conhecer:
http://www.sacredspace.ie/
http://www.pray-as-you-go.org/

Vantagens:
Dispensa deslocações (ideal para doentes crónicos e idosos)
Escolha do timing para o ritual
Partilha de conhecimentos e experiências (blogs, fóruns)

Desvantagens:
Menos oportunidade de participar in loco nos eventos de grupo.
Entre o fundamentalismo ateu e religioso, há quem prefira as águas tranquilas da prática meditativa e os caminhos discretos da oração, no aconchego do lar, fazendo da Internet um aliado seguro e uma porta de acesso a outras pessoas com idênticas motivações em qualquer parte do mundo.
Contudo, o sentimento de solidão acompanhada é hoje perceptível nas grandes cidades, símbolos da razão, da dispersão e do individualismo. Talvez por isso mesmo, nas horas de maior incerteza, muitos reencontrem algum conforto em aprofundar raízes, acolhendo a tradição. Na sociedade de consumo, chega uma altura em que descobrimos que o Pai Natal não existe, mas a expressão “se Deus quiser” continua viva na sociedade laica portuguesa, marcada por um – ainda forte – pendor religioso.

“Para o cristão não há acaso, estamos de tal forma acompanhados e protegidos que essa companhia divina nunca nos abandona e suaviza grandemente os golpes que a vida inflige a todos nós.” Quem o afirma é Maria Armanda Saint-Maurice, 62 anos, jornalista e teóloga em vias de doutoramento. A seu ver, a fome e a sede espirituais imperam. Mas desiluda-se quem espera do cristianismo uma “receita fácil” ao estilo das fórmulas de auto-ajuda.

Para o cristão tudo depende de uma decisão que implica a fé, a qual é, simultaneamente, dom e desejo. No plano humano, o desejo e a esperança reorientam a vida, direccionam a pessoa para o contacto com o sobrenatural. E a esse contacto o cristianismo chama “estado de graça”, em virtude do qual a carga do quotidiano se torna comparativamente “leve”, como diz Jesus: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e a minha carga é leve” (Mt 11,29). A teóloga afirma: “O cristianismo é um caminho iniciático que obriga a sair de si em direcção ao Outro, uma viagem em busca da auto-revelação do ‘mistério sagrado’ que é o próprio Deus.”

Francisca Martins, de 39 anos, empresária na área da comunicação e mãe de três crianças, descobriu recentemente essa presença concreta que, como católica praticante, nunca tinha experimentado antes. O divórcio e as alterações profissionais que atravessou nos últimos anos deixaram-na vazia e perdida e teve necessidade de encontrar sentido no aparente absurdo que estava a viver. “Parei, decidi tirar um tempo para me centrar e rezar, abrir--me e confiar-me a uma presença superior e de amor que toma conta de mim e me deixa serena.”

O poder da oração na saúde e na qualidade de vida tem sido amplamente demonstrado por investigações científicas, mas a forma como actuam tais mecanismos, inclusivamente na remissão espontânea de condições patológicas graves, continua a ser um enigma.

Seja pela porta das religiões monoteístas, das panteístas ou das filosofias espirituais inspiradas na moderna física quântica, a fé e a capacidade de acreditar – sem ter de ver para crer – parecem estar na base daquilo que investigadores (como o psicólogo americano Mihaly Csikszentmihalyi) designam por experiência óptima ou de fluxo: “Um estado em que a pessoa desfruta verdadeiramente de alguma coisa ou em que se concentra activamente numa tarefa, a ponto de se esquecer de tudo o resto.”

Meditar, contemplar, rezar, ainda que em planos diferentes, podem representar a tal luz ao fundo do túnel (leia-se entusiasmo e energia extra), graças à qual se movem montanhas de uma forma subtil.


Quem somos, de onde vimos e para onde vamos
segundo Isabel Leal

1 A fé move montanhas e o marketing move tudo.

A fé é intrínseca ao homem e o marketing uma espantosa construção humana. Porque o é, aproveita tudo o que pode, incluindo a nossa condição de seres sempre em busca de sentido para produzir, e reproduzir, cadeias de significações, algumas das quais se constituem como crenças tão enraizadas que podem merecer o nome de fés.

2 Provavelmente porque fomos todos muito pequenos e muito dependentes de outros que pareciam saber tudo, ter todas as respostas e manter em controlo um mundo incompreensível, habituámo-nos a acreditar que haveria sempre quem cuidasse de nós, quem tivesse o poder de mandar embora os fantasmas que assombram os dias e nos mantêm, vida fora, medrosos ou, pelo menos, cuidadosos e em estado de alerta.

3 Dos anos mais marcantes do nosso desenvolvimento guardamos a desagradável sensação de pequenez, insignificância ou desamparo, que gerimos como pudemos. A forma mais estruturada e antiga de lidar com o que desconhecemos tem sido a posse de sistemas de crenças colectivas que, no limite, têm uma resposta, mesmo que bizarra, atabalhoada ou alheia a qualquer princípio de lógica formal que gostamos de dizer que privilegiamos.

4 Durante muitos séculos, esses sistemas de crenças partilhados foram os grandes organizadores da vida em sociedade, já que, ao possuírem corpos de funcionários dedicados e regras estritas de funcionamento individual, se inscreviam na matriz cultural de todos os indivíduos. Se em muitos locais do mundo isto continua a ser assim, no mundo ocidentalizado, individualista e liberal, criaram-se as boas condições para a emergência sazonal de novas fés e outras crenças centradas sobre aquilo que, em cada momento, se vai constituindo como objectos ajustados ao que vamos sendo.

5 É por aqui que entra em acção o marketing, que difunde crenças e planetariza ideias que, mesmo por um espaço de tempo curto, nos ajudam a ficarmos prenhes de sentidos. Sentidos que cobrem vazios inquietantes ou facilitam mais uma temporada de algum conforto, na convicção de que sabemos quem somos, de onde vimos e para onde vamos.

Mesmo que pareça tosco, é assim que somos e assim que funcionamos.

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