A fé em Deus e na Igreja empalidece.
A procura de novas crenças assume múltiplas faces.
Mas nem sempre se revela um caminho fácil e de resultados instantâneos como se espera.
Por Clara Soares
Catedrais do consumo à pinha, veículos em fila, caras inexpressivas ou ansiosas, evidenciando cansaço após mais uma jornada laboral. Raro era o transeunte que não tivesse passos apressados, desdobrando-se em frenéticas entradas e saídas de lojas, tendo em mente apenas um objectivo: as compras natalícias. Pela primeira vez na vida, decidi não cumprir o ritual e optei por deixar o estado de sítio em que a capital se transforma a partir do meio do mês – e que nem as belas iluminações que ornamentam as ruas conseguem disfarçar – e tirar uma semana de férias. Na véspera da partida comprei algumas lembranças no comércio local e rumei à Costa Nova, em Aveiro. Ali, instalei-me no centro de espiritualidade Jean Gailhac, para um retiro de silêncio e oração orientado pelo padre jesuíta Vasco Pinto Magalhães. Nunca tinha feito nada do género, mas após um ano particularmente exigente a vários níveis – profissional, familiar e pessoal – ousei aventurar-me, a convite de uma amiga, por um caminho bem diferente do proposto pela sociedade de consumo. Foi há dois anos e ainda hoje me lembro do bem que me fez permitir-me parar, desligar do bombardeamento informativo e das rotinas a que sempre estive habituada nesta quadra. A minha curiosidade pela condição humana e propensão para o questionamento conduziram-me até à psicologia e ao jornalismo que, a meu ver, colidiam muitas vezes com os pouco palpáveis meandros da fé. Apresentei-me como leiga e entreguei-me à experiência do retiro. Os primeiros dias foram difíceis. As caminhadas fora do centro – diariamente percorria alguns quilómetros a pé pelas dunas, junto ao Atlântico, em diálogos internos nem sempre serenos –, os almoços e jantares caseiros ao som de música clássica e o facto de me sentir acolhida entre os outros participantes do grupo, nas orações e palestras, não atenuaram a sensação de travessia no deserto. Era como se me tivesse despido de parte da minha personalidade e extensões materiais que a sustentavam (incluo aqui o computador com ligação à net, o telemóvel, o carro e o leitor de CD e a estação de rádio que sempre me acompanha em dias ditos normais). Para além das descobertas que fiz, sublinho a capacidade de olhar para os Evangelhos com outra abertura e a possibilidade de abraçar em mim vulnerabilidades e forças, assistindo ao processo de reequilíbrio silencioso entre elas. Aprendi naqueles dias a aceitar o que não controlo no quotidiano e a confiar nos trilhos da vida, apesar de nem sempre os compreender na totalidade, por não serem feitos à medida do meu querer. Expandi as minhas próprias fronteiras e mais consciente do valor de prazeres simples que tomava como garantidos e sem valor. Foi neste contexto que assisti ao fenómeno editorial de sucesso do ano, o livro O Segredo (editora ASA), da produtora australiana Rhonda Byrne. No recém-lançado formato em DVD no nosso país, em nova quadra natalícia, a autora apresenta uma ficção documental ao estilo do filme Código Da Vinci (inspirado no livro de Dan Brown), onde os depoimentos de nomes sonantes da filosofia, da física e da psicologia se misturam com cenas simuladas, fruto dos testemunhos de gente que venceu na vida, desde doenças a condições de escassez material e relacional. Pelo meio destacam-se citações famosas de pensadores da História, de Newton a Buda, passando por trechos da Bíblia e ensinamentos de Platão. E um conceito unificador que a empresária espiritual Rhonda diz ter sido a sua grande descoberta: a lei da atracção. Em que é que este livro se demarca da onda de obras de auto-ajuda que proliferam no mercado e enchem as prateleiras de quem os compra? O que tem de especial este conceito, para atrair milhões de pessoas em todo o mundo (O Segredo circula em mais de 33 países e as vendas não param de crescer) e ser a base de centenas de workshops promovidas por empresários, terapeutas de medicinas complementares e grupos da Nova Era (correntes esotéricas, em voga na última década)?
Em resumo, pode ler-se no site oficial, “cada ser humano tem a capacidade de transformar fraquezas e sofrimento em força, poder, paz, saúde e abundância”. Tratar-se-á do poder da fé? E em que plano? De acordo com este livro, ela reside no poder da mente, que pode sintonizar-se com determinados comprimentos de onda: pensar coisas negativas é caminho certo para as atrair no quotidiano. Porém, se a mente se focar noutra vibração, tudo pode mudar, desde que se acredite. E não é preciso seguir qualquer religião, tudo depende do próprio e da descoberta da lei da atracção. Os esforços para obter da autora algumas respostas às minhas perguntas, ao longo de algumas semanas, foram vãos (cheguei a questionar-me se tal fracasso era devido à minha incapacidade de acreditar o suficiente para ter uns minutos de tempo de antena). Nova questão: como lidam as pessoas com esta mensagem? Será que conseguem o carro ou a casa da sua vida, o parceiro ideal, o emprego certo? E caso o universo não atender ao pedido, por mais que se acredite nele? Uma simples busca na Internet conduziu-me a inúmeras propostas de cursos para particulares e empresas, também em Portugal. Alexandra Almeida, de 34 anos, formadora e técnica de coaching no Espaço Dharma Vida (www.dharmavida.com), em Loures, recorre ao livro e ao filme como ferramentas formativas nos cursos de meditação dirigidos a grupos. Segredo é uma reciclagem de conhecimentos antigos que há muito são usados para ajudar as pessoas a concretizarem a visão que as realiza, o seu potencial.” Porém, adverte que nem tudo se resume à lei da atracção, “há todo um sistema de crenças que condiciona o processo, a capacidade de acreditar em algo que ainda não se manifestou mas tem condições para tal”. Não desistir é o lema. Visualizar, focar a mente e estar centrado e relaxado são ingredientes essenciais para atingir objectivos de vida, sejam profissionais (nas empresas) ou pessoais (nos relacionamentos e metas individuais), como atestam os estudos sobre inteligência emocional do psicólogo americano Daniel Goleman, e de inteligência espiritual, baseados nas investigações da física e filósofa americana Dana Zohar. Esmerinda Ferreira, de 46 anos, frequentou um destes cursos numa altura em que atravessava uma crise financeira e pessoal e a mensagem não podia vir em melhor altura. A antiga catequista, que se revê na filosofia cristã mas não é católica, diz ter-se encontrado a si mesma quando começou a pôr em prática os princípios da psicologia positiva no quotidiano, focando-se no poder da intenção, naquilo que se quer (em vez daquilo que não se quer). “Para mim, todo o universo é Deus e Deus é energia. O importante é sintonizar-me com ela.” Hoje tem uma nova carteira de clientes e uma nova empresa e deve-o, assegura, ao processo de autoconhecimento. “Estou convicta de que o sucesso das obras de auto-ajuda como esta tem a ver com as mudanças sociais, em que a família e o trabalho deixaram de ser uma fonte de realização; é preciso que cada um descubra o seu próprio modelo de estar na vida.” Estes princípios encontram-se ainda nas correntes espirituais não religiosas como a psicologia transpessoal e a astrologia psicológica. Aqui, as filosofias ancestrais servem de base a novas linhas de pensamento associadas aos estudos sobre consciência.
De volta à questão central, a fé e porque necessitamos de acreditar e confiar em algo maior que nós – seja num grupo, numa ideologia ou numa religião –, ela revela-se quase sempre em períodos críticos, embora haja quem tenha um trajecto linear. É o caso de Carlos Gil, de 43 anos e técnico comercial no concelho de Cascais, que diz ser um homem de fé e prendado pela vida desde que se conhece. Nascido em Luanda e filho de pais católicos, assume a sua religiosidade sem preconceitos e faz peregrinações regulamente (www.peregrino.org). As duas ou três caminhadas que faz anualmente são uma forma privilegiada de religar-se com o divino. “Se Deus existe, é quando caminho que estou com ele.” Da sua história de vida, recorda com especial atenção os períodos de crise, no pós-revolução, quando a família veio sem nada para Portugal. “Passámos do 80 para o 8, deixou de haver mordomias e luxos, não tínhamos sequer mobília, mas a minha mãe fazia de tudo uma festa e foi com ela que aprendi que a alegria de viver não tem directamente a ver com o que nos acontece.” Carlos lembra ainda os lugares por onde já peregrinou: Peru, Angola, Santiago de Compostela e Fátima. “Pratico o chamado voto de pobreza, embora reconheça o prazer das coisas mundanas. Levo uma vida simples com a minha família e não a sacrifico por nenhum trabalho do mundo.” Em sua casa não se vê televisão porque “passa uma imagem distorcida de um mundo violento, triste e sem alma”. A este propósito, refere um Natal remoto, em que se esqueceu das prendas para os dois filhos no carro e se levantou de manhã para ir buscá-las, dando com o veículo assaltado e pedaços de papel de embrulho no chão. Contou aos filhos que um senhor tinha levado os presentes, ao que eles responderam: “Se calhar o filho desse senhor não tinha prendas e assim vai ficar contente.” Nada o poderia ter deixado mais comovido do que aquela atitude dos filhos, onde ele se revê com gratidão. A sua máxima consiste em não estabelecer condições para ser feliz, até porque “o que é significativo nas nossas vidas acontece por acaso e há que aceitá-lo sem criar necessidades desproporcionadas”. Paulo Borges, de 47 anos, presidente da União Budista Portuguesa e membro da comissão coordenadora da recente visita do Dalai Lama a Portugal, partilha de uma visão semelhante e vai mais longe quando afirma que “a tecnologia e a comunicação global podem distrair-nos e cultivar falsas expectativas, mostrando-se impotentes para resolver as nossas inquietações fundamentais”. Na perspectiva budista, a fé não é a adesão emocional a uma doutrina mas antes uma confiança que conduz a libertação do sofrimento e ao despertar da consciência para a realidade profunda das coisas. “Tal é possível através da prática da meditação e da disciplina ética.” E se esta tomada de consciência e despertar para outros níveis de conhecimento é mais provável em períodos específicos da vida – “para a maioria das pessoas, só o sofrimento leva à busca de novos horizontes” – nem sempre tem de ser assim: “É fundamental não estarmos dependentes dos ciclos psicobiológicos para descobrir a nossa natureza mais profunda.” Não é propriamente uma novidade que “a vida é difícil” (como afirma o psiquiatra católico americano Scott Peck no seu livro O Caminho Menos Percorrido). O dado novo, na sociedade globalizada, é o número crescente de ateus que tem feito notícia em jornais de referência como o The Sunday Times ou a Wired (esta publicação dedica um número inteiro ao tema). No universo tecnológico, que idolatra a ciência e o conceito de controlo pessoal, a dúvida sistémica é premiada. Olhando este fenómeno de perto, chega-se à conclusão que os ateus também têm convicções: segundo eles, os crentes são crédulos e não aceitam a finalidade da morte.
Contudo, o sentimento de solidão acompanhada é hoje perceptível nas grandes cidades, símbolos da razão, da dispersão e do individualismo. Talvez por isso mesmo, nas horas de maior incerteza, muitos reencontrem algum conforto em aprofundar raízes, acolhendo a tradição. Na sociedade de consumo, chega uma altura em que descobrimos que o Pai Natal não existe, mas a expressão “se Deus quiser” continua viva na sociedade laica portuguesa, marcada por um – ainda forte – pendor religioso. “Para o cristão não há acaso, estamos de tal forma acompanhados e protegidos que essa companhia divina nunca nos abandona e suaviza grandemente os golpes que a vida inflige a todos nós.” Quem o afirma é Maria Armanda Saint-Maurice, 62 anos, jornalista e teóloga em vias de doutoramento. A seu ver, a fome e a sede espirituais imperam. Mas desiluda-se quem espera do cristianismo uma “receita fácil” ao estilo das fórmulas de auto-ajuda. Para o cristão tudo depende de uma decisão que implica a fé, a qual é, simultaneamente, dom e desejo. No plano humano, o desejo e a esperança reorientam a vida, direccionam a pessoa para o contacto com o sobrenatural. E a esse contacto o cristianismo chama “estado de graça”, em virtude do qual a carga do quotidiano se torna comparativamente “leve”, como diz Jesus: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e a minha carga é leve” (Mt 11,29). A teóloga afirma: “O cristianismo é um caminho iniciático que obriga a sair de si em direcção ao Outro, uma viagem em busca da auto-revelação do ‘mistério sagrado’ que é o próprio Deus.” Francisca Martins, de 39 anos, empresária na área da comunicação e mãe de três crianças, descobriu recentemente essa presença concreta que, como católica praticante, nunca tinha experimentado antes. O divórcio e as alterações profissionais que atravessou nos últimos anos deixaram-na vazia e perdida e teve necessidade de encontrar sentido no aparente absurdo que estava a viver. “Parei, decidi tirar um tempo para me centrar e rezar, abrir--me e confiar-me a uma presença superior e de amor que toma conta de mim e me deixa serena.” O poder da oração na saúde e na qualidade de vida tem sido amplamente demonstrado por investigações científicas, mas a forma como actuam tais mecanismos, inclusivamente na remissão espontânea de condições patológicas graves, continua a ser um enigma. Seja pela porta das religiões monoteístas, das panteístas ou das filosofias espirituais inspiradas na moderna física quântica, a fé e a capacidade de acreditar – sem ter de ver para crer – parecem estar na base daquilo que investigadores (como o psicólogo americano Mihaly Csikszentmihalyi) designam por experiência óptima ou de fluxo: “Um estado em que a pessoa desfruta verdadeiramente de alguma coisa ou em que se concentra activamente numa tarefa, a ponto de se esquecer de tudo o resto.” Meditar, contemplar, rezar, ainda que em planos diferentes, podem representar a tal luz ao fundo do túnel (leia-se entusiasmo e energia extra), graças à qual se movem montanhas de uma forma subtil.
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