António Feio e José Pedro Gomes Conversa da treta têm todos os portugueses
Sem tretas de oratória, porque não foi isso que os juntou há 15 anos, António Feio entrevistou José Pedro Gomes, a convite da Domingo. Humor; recordações; humor; traições matrimoniais; paixões; e histórias de humor.Assim se pautou a conversa.Mas Zé Pedro – como o trata o amigo – não evitou críticas.
E bem sérias. O percurso dos dois actores, lança-se em conversas nunca antes tidas, que só se distanciam na ligação maoísta que o entrevistado assume, de quando esteve emigrado em França.Anos depois, já como dupla inseparável,
visitaram o País com “Conversas da Treta”.António Feio – Por que é que dizem que tens mau feitio?José Pedro Gomes – Acho que é porque falo quando a maior parte das pessoas se calam. E percebi que me faz bem ao estômago, em vez de guardar, descarregar. Recomendo vivamente a todas as pessoas que têm úlceras, mandar cá para fora o que lhes passa pela cabeça.Acho que, por isso não acontecer, é que as coisas estão como estão no País.- Propões um País mal-disposto?- Não!- Uma das minhas primeiras encenações para adultos foi na Casa da Comédia – na altura, o La Féria ia ser operado à vista. E tu foste ver esse espectáculo.Até aí, nós só nos encontrávamos no bar da Comuna, ou noutro lado qualquer.A seguir a esse espectáculo, fomos comer um bife ao Snob. Eu estava muito curioso para saber a tua opinião sobre a peça.E tu mataste o espectáculo: “eu não gostei nada” – disseste-me.Daí nasceu a nossa amizade. Agradou-me a tua frontalidade.Depois, fiz outro espectáculo, com o Virgílio Castelo, nas Amoreiras, no centenário da morte do Van Gogh.Ao fim de cinco minutos, adormeceste na primeira fila. Portanto, nos meus espectáculos adormecias ou não gostavas. A partir daí, as coisas só podiam melhorar.- Começámos a trabalhar em televisão, no Clubíssimo.Só mais tarde iniciámos a saga da ‘Conversa da Treta’, que era uma ideia minha para arranjar um espectáculo de fácil adesão para o público.Durante a digressão pelo País confirmámos que a crise do teatro não era tão negra como se dizia. Verificámos é que, muitas vezes, não havia interesse por parte das pessoas que fazem teatro em chegar ao público.- Foi também no início que conhecemos o Paulo Dias e a ‘Conversa da Treta’ tornou-se no primeiro espectáculo da UAU – que até aí só produzia grandes espectáculos internacionais.- Isto é importante, na medida em que a produção dos nossos espectáculos deixa de ser artesanal para passar a ser feita por uma empresa especializada.- Do teatro, a ‘Conversa da Treta’ passou a programa de televisão.Primeiro foi gravado pela SIC, depois interessaram-se pelo formato. Fizeram uma série de 26 episódios. Depois a SIC acabou por tratar-nos mal como trata, normalmente, tudo o que é produto nacional.Passámos para a rádio e terminámos no cinema. A propósito, identificaste-te com o quê na ‘Conversa da Treta’?- Conversa da treta têm todos os portugueses. Nós só nos especializámos. O ‘tuga’ não consegue estar calado e, mesmo quando não sabe do que está a falar, tem grandes opiniões. E opiniões históricas. Convictas.- Acho que já lhe está no ADN.- Exacto. Além do mais, este espectáculo deu-me a possibilidade de improvisar. Depois esse título é genial. Tu achas que não és genial a inventar, mas o título que deste é genial. És de uma genialidade a inventar.- Eu adorava inventar para te entalar. O meu grande objectivo no mundo era entalar-te, especialmente nos dias de espectáculo, das 21h30 às 00h00. Muitas vezes entrava no palco doido com qualquer coisa para te entalar. Tal como a adesão de público que tivemos com a ‘Treta’, este novo que vamos fazer dos ‘Monty Python’ também me parece que pode gerar o mesmo. Esse é o denominador comum daquilo que queremos fazer- E neste momento, os ensaios têm sido muito giros. Por um lado estamos a pegar em coisas de monstros sagrados, por outro, queremos fazê-lo com essa responsabilidade. Vamos estreá-lo no Auditório dos Oceanos, dia 18, no Casino de Lisboa. Mas voltamos à ‘Treta’ para estrear novo filme para o ano.- [Uma pergunta para entalar] E amantes, tens?- Amantes já não tenho... tive uma e dei-me mal. Mas era mesmo facada no matrimónio! E não volto a fazer isso.- A coisa foi recente? Foi há 15 dias?- Já foi há muitos anos. A minha mulher é minha amante ao mesmo tempo.- Tens dois filhos?- Tenho uma do primeiro casamento.- A primeira que traíste, portanto.- A única que traí. Tenho essa filha, com 33 anos, e um filho, deste último casamento, com 12.- Voltando a “Os Melhores Sketches dos Monty Python”; já decoraste o texto?- Não.- Como é que começaste a fazer teatro?- Foi por causa de um actual colega nosso, Luís Lucas, que um dia me convidou para fazer teatro num grupo. Um deles estava na faculdade e nós no liceu D. João de Castro. Aliás, a razão ainda anterior foi por um professor que tínhamos no liceu. Nessa turma também estava o Álvaro Faria.- Mas por textos...- A propósito de Gil Vicente, que o deu de uma maneira tão apaixonante. Eu, o Lucas e o Álvaro fomos para a Biblioteca Nacional ler tudo sobre ele.- Esse professor merecia uma medalha, porque deve ter sido o único que conseguiu entusiasmar alguém para o Gil Vicente.- Exactamente. Ele, justamente, mostrava-nos nos textos de Gil Vicente a modernidade que também havia, nas coisas que ele fazia, em relação à época e ainda hoje. Depois, o Lucas entrou num grupo de malta da Faculdade de Letras. Fizemos o “Auto da Barca do Motor Fora de Borda”, do Sttau Monteiro. Fizemos dois espectáculos com esse texto, num teatro – ou talvez numa igreja –, ali para Campo de Ourique. Estávamos em 69/70. Isto numa altura que a Igreja era progressista – e dava apoio a coisas que não tinham a ver com a Igreja. Até porque no texto da peça se criticava a própria Igreja. Eu espalhei-me logo porque depois do espectáculo havia um debate com o público e falei de coisas que a PIDE não ia gostar.- Portanto, foste preso.- Nunca fui preso. Depois fui para França para fugir à guerra. Juntei-me a portugueses que fui lá conhecendo. E foi através de um irmão do meu cunhado que me liguei a um grupo clandestino – primeiro, sem saber muito bem– que era uma organização política.- Tão clandestino que não sabias.- Só soube depois, quando me disseram...- Depois do 25 de Abril. Quando já tinhas andado a distribuir panfletos cheios de foices e de martelos.E era o quê?- Era o CLMP – Comité Marxista-Leninista Português.- Podia ser o Comité da Má-Língua Portuguesa.- Não. Éramos maoístas. Éramos concorrentes do MRPP [Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado], que eu sabia se havia lá em França. E uma das actividades, para prender a atenção dos trabalhadores portugueses, das várias associações da organização iam desde fazer bifanas e sardinhadas, até ao teatro. Então comecei por fazer teatro. E passado quatro anos – já no fim – dirigi eu o grupo de teatro. Tudo isto como amadores. Quando voltei, depois do 25 de Abril, não fazia tensões de ser actor profissional. Primeiro foi uma coisa amadora, depois política.- E a tua ideia era fazer o quê? Fazer o menos possível!- Não, porque nessa altura já tinha mulher e uma filha; estava cheio de energia porque tinha vinte e tal anos.- Casaste lá?- Casei. E a minha filha Marta nasceu lá.- Começaste a fazer o quê cá?- Ah, tinha saído de Portugal com o 6.º ano do liceu. Como tinha já chumbado dois anos, esgotava-se ali a oportunidade de me darem autorização para sair. Senão, tinha de ir à tropa. E nessa altura, em 1960, onde é que tu andavas?- Fui para Moçambique em 68 ou 69, quando fiz 14 anos. Já tinha feito cá teatro, no Experimental de Cascais. Como era praticamente o único miúdo que havia aí em teatro, fiz cinema, rádio, televisão. Tudo o que havia.Lá, praticamente não fiz nada, a não ser quando duas companhias de cá lá fizeram digressões. Uma foi a companhia da Laura Alves – com o Ruy de Carvalho, Tomás Macedo, Canto e Castro. Outra era do Henrique Santana. Acabei por voltar depois do 25 de Abril. Mas diz-me, que profissões tiveste por cá?- Coisas indiferenciadas. Passei muito tempo desempregado – não era fácil arranjar emprego. Trabalhei numa loja, em Lisboa, a vender coisas regionais alentejanas.Trabalhei na Dyrup, a fazer tintas, com um velhote que seria o equivalente àqueles computadores.- Que misturavam as tintas para fazer o branco-natureza.- Sim, mas um tipo já com sessenta e tal ou setenta anos. E o meu trabalho era ir buscar as tintas que esse tipo precisava.- Fazias de hardware e ele de software.- Exactamente. Era giro porque, imagina uma tina gigante com uma coisa a misturar. E ele pedia-me meio litro de azul. Depois o tipo ia afinando. Pegava num bocado da tinta e ia pintando...- Em ti, nas costas.- Num bocadinho de papel e punha a secar. Aquilo era uma tina enorme, que depois se despejava para as latas.- Sei que em Paris vendias jornais.- Sim. Fazia limpezas. Emigrante!- Pois, eras portuga: trabalhavas bem, recebias mal e cumprias horários. E não criavas problemas, ou já criavas?- Já criava. Uma vez fui chamado à polícia... o equivalente à PIDE de lá. Perguntaram-me o que era isso de associações – os emigrantes, não podiam ter actividade política.- E depois das tintas?- Passei o ano todo de 1975 a fazer o que aparecia. Em 76, estava a fazer traduções e o Álvaro Faria apareceu-me em casa, às três da manhã, para me convidar para o teatro Proposta.E em 80, o que estavas tu a fazer?- Devia estar no teatro ADOC, que acho que acabou logo a seguir.- Eu praticamente não contactei com a malta mais antiga do teatro.- Trabalhei com quase todos. Não sou do tempo do Vasco Santana. Trabalhei com o António Silva; estreei-me com a Mirita Casimiro, que era a mulher do Vasco Santana. O Raul de Carvalho. Trabalhei no último espectáculo que a Amélia Rey Colaço fez – uma mulher extraordinária, já muito surda, mas com um sentido de humor...- Aliás, tens uma história extraordinária, quando foste convidado por ela para esse espectáculo.- Atendi o telefone e oiço do outro lado: “tá, António Feio?” Sim, sim. “Daqui é Amélia Rey Colaço.” E eu, logo, do outro lado, julguei que era brincadeira, disse: olhe e daqui é o Robles Monteiro. Que era o marido dela, que já tinha morrido. Ela já estava um bocado surda e não ouviu, mas eu comecei a entrar em pânico. Então a dona Amélia era uma daquelas pessoas que um gajo se punha logo em pé, mesmo ao telefone. Depois deste período, tu e eu começámos a fazer coisas juntos. Que é o pior que nos podia ter acontecido...- Nós também queríamos chegar ao público. É verdade! Começámos a trabalhar no fim dos anos 80. Já lá vai muito tempo...OS DUPLOS ACTORESUm podia ser o duplo do outro – só que, claro, com todas as diferenças fisionómicas óbvias. O humor de um é a sombra das tiradas do outro, e vice-versa.José Pedro Gomes ri mais, é certo. Mas as risadas de António Feio são para dentro. Talvez até em igual número. São uma dupla que conversa, quer seja treta ou não.E foi neste ambiente descontraído que António Feio chegou ao restaurante Sabor a Brasil, no Parque das Nações, Lisboa: pronto a disparar perguntas ao colega. E algumas delas à queima-roupa. Chegou poucos minutos atrasado, Zé Pedro – como o trata o amigo/entrevistador – é o ‘rapaz’ vivaço ideal para não deixar perguntas órfãs de resposta, com ou sem humor, ou na ‘reinação’. Pouco álcool.Uma cerveja para Zé Pedro; coca-cola para António Feio.Um bife bem passado para o primeiro; picanha para o segundo, que deixou a maior parte dos acompanhamentos na travessa – é magro; e fuma bastante, parece que tem as ideias muito agitadas pelo pensamento. Na estreia fora dos palcos, numa entrevista de Feio para Zé (a convite da Domingo), revelaram a paixão comum: representar e deixar a plateia em dilúvio de riso.JOSÉ PEDRO GOMESNasceu em Lisboa a 28 de Dezembro de 1951. Para fugir à tropa, emigrou para França, onde chegou a ser actor de teatro amador. Regressou depois do 25 de Abril e, em 1976, inicia uma actividade profissional como actor. Tem dois filhos, com 33 e 12 anos, de mães diferentes.ANTÓNIO FEIONasceu a 6 de Dezembro de 1954, em Lourenço Marques, Moçambique. Viveu lá até aos 7 anos – veio viver para Carcavelos – e regressou aos 14. Fez teatro desde muito novo.Tem quatro filhos e é divorciado."CONVERSA DA TRETA"É uma ideia de José Pedro Gomes, com título de António Feio, que juntou a dupla no teatro, televisão, rádio e cinema. Para o ano estreia novo filme."MELHORES SKETCHES DOS MONTY PYTHON"Corrosivo? É o estilo. O humor e a ironia dos “Monty Python”. Será o próximo espectáculo, a estrear, dia 18, às 22h00, no Auditório dos Oceanos do Casino de Lisboa (no Parque das Nações):“Melhores Sketches dos Monty Python”.Nuno Markl traduziu, e adaptou à realidade portuguesa, os textos da série britânica que fez sucesso entre 1969 e 1974 - com os actores Eric Idle, Graham Chapman, John Cleese, Michael Palin, Terry Jones e Terry Gilliam. E para levar à cena os ‘sketches’ deste filão de risos, estarão os actores António Feio, José Pedro Gomes, Bruno Nogueira, Jorge Mourato e Miguel Guilherme.Ao público apresentam-se com temas mundanos, sociais, políticos, que vão da medicina, Igreja, vida militar ao sexo.
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