quinta-feira, julho 31

100 anos de Umbanda



100 anos de Umbanda

Por Gunter Axt
Rituais de incorporação de entidades eram conhecidos no Brasil colonial. Mas não foram apanágio de escravos ou caboclos. Já em 1818, no Rio de Janeiro, funcionava um Círculo Homeopático, onde médicos e médiuns ministravam passes e receitas. Em 1873, surgiu no Rio de Janeiro o primeiro grupo que abraçava a doutrina kardecista. Em 1884, fundou-se a Federação Espírita Brasileira, que pretendia congregar os centros em todo o País. Em 1889, Alan Kardec, em espírito, revelou aos brasileiros, por intermédio de um médium, a importância que teriam na difusão mundial da doutrina. Em 1891, entretanto, o novo Código Penal criminalizou a homeopatia e os passes mediúnicos. Os kardecistas se insurgiram contra a medida, mas pretenderam se diferenciar do chamado baixo espiritismo, mais popular. Apesar das adversidades, o kardecismo espalhou-se pelo país e desenvolveu-se especialmente em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Surgiram federações, confederações, sociedades. Divergências internas e de doutrinas também não se fizeram esperar, como mostram Maria de Lourdes Janotti e Beatriz Lang.

Uma das mais célebres começou no dia 15 de novembro de 1908. Justamente o dia da proclamação da mesma República com fumaças europeizantes que criminalizara as práticas mediúnicas populares. O Caboclo Sete Encruzilhadas teria se manifestado pela primeira vez, numa sessão kardecista em Niterói. Com a pretensão de cientificidade e traduzindo a hierarquização da sociedade brasileira, os kardecistas rechaçavam as incorporações dos espíritos de índios e escravos negros, considerados pouco evoluídos.

O aparelho era um rapaz de 17 anos, chamado Zélio de Moraes. Filho de militar, se preparava para ser cadete na Marinha. Militar também era o diretor da casa espírita que recebera Zélio para ajudá-lo a curar-se do mal que então o afligia - espécie de ataques que o faziam falar em línguas estranhas, andar curvado, ou então lépido e felino, ou ainda cair prostrado com uma estranha paralisia.

Repelidos, o jovem Zélio e o Caboclo Sete Encruzilhadas acabaram fundando em São Gonçalo a primeira tenda de Umbanda: " haverá uma mesa posta a toda e qualquer entidade que queira se manifestar, independentemente daquilo que haja sido em vida. Todos serão ouvidos. Nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais, ensinaremos os que souberem menos e a nenhum viraremos as costas e nem diremos não", teria dito o Caboclo. No início dos anos 1920, médium e espírito ajudaram a estruturá-la e apoiaram novos centros. Em 1939, fundou-se a primeira federação brasileira dos centros umbandistas.

Assim, mais ou menos na mesma época em que Oswald de Andrade divulgava o Manifesto Antropofágico, Mário de Andrade sublinhava a importância da cultura imaterial brasileira (conclamando ao olhar sobre o folclore, os hábitos, os costumes e a estética do interior do Brasil), Tarsila do Amaral pintava aquela "coisa do mato" batizada Abapuru e eclodia o Movimento Tenentista reivindicando a democratização da política; a Umbanda acaboclava e africanizava o kardecismo, conferindo posição de prestígio a Pretos Velhos e sua vivência de senzala, aos índios com a alma impregnada pelo mato e às pombas giras e seus hábitos insinuantes das periferias urbanas. Combinando aspectos da pajelança indígena, dos rituais africanos, do kardecismo, do catolicismo popular e até do esoterismo oriental, a Umbanda já de saída mostrou-se uma elaborada fórmula de sincretismo e uma profunda manifestação antropofágica, no sentido justamente dado por Oswald - isto é, uma hibridização cultural, como diria o historiador Peter Burke, entre diversos marcos identitários, um diálogo que produziu uma nova síntese.

Esta síntese revelou adaptação ao meio urbano, social e político. Baniu o sacrifício de animais e repeliu a feitiçaria, procurando se diferenciar dos rituais africanos e, assim, escapar à perseguição da polícia. Neste sentido, a Umbanda "desafricanizou" o candomblé, mas possibilitou a sobrevida dos orixás no ambiente urbanizado que então se formava. Afinal, as matanças rituais demandavam o fornecimento de aves, cabritos, ovelhas..., a existência de terrenos baldios, praias e encruzilhadas para os despachos, o rufar de atabaques varando a madrugada. Elementos, enfim, cada vez mais indisponíveis nas cidades, ou cada vez menos tolerados por uma sociedade que aspirava se "aburguesar".

A antropóloga norte-americana Diana Brown, nos anos 1960, concluiu serem os centros desta religião formados eminentemente por pessoas oriundas das classes médias, insatisfeitas com a rigidez do kardecismo e observadoras atentas da macumba, cuja carga dramática era certamente mais intensa. Muitos dos freqüentadores, aliás, seguiam sendo militares. Foi uma das primeiras representantes da alta cultura a rechaçar a tese de que a Umbanda seria um símbolo do subdesenvolvimento brasileiro, sustentado por setores mais pobres e menos escolarizados da população, como de resto pensava, então, a maior parte da elite intelectual tupiniquim.

O nacionalismo do período Vargas, antes e durante o Estado Novo, beneficiou genericamente a Umbanda. Desempenhava um papel importante à valorização de índios e escravos. Na década de 1930, quando a Umbanda se consolidava, como registra o antropólogo Émerson Giumbelli, Chico Xavier afirmava-se no kardecismo e o Santo Daime surgia no Acre. Haveria, portanto, esta tendência de valorização do caráter nacionalista nas religiões. Paralelamente, Gilberto Freyre, cuja obra celebrava a mestiçagem biológica e cultural do brasileiro, promovia em 1934, em Recife, um congresso das religiões afro-brasileiras.

Nada disso impediu, entretanto, as perseguições. Durante o Estado Novo, a polícia invadiu centros, prendeu médiuns e tentou reprimir sessões. O ambiente populista dos anos 1950 favoreceu, pelo menos de início, a Umbanda. Políticos envolviam-se nas atividades dos centros e procissões começaram a sair em Copacabana e no litoral de São Paulo.

Em 1964, caiu a exigência de registro obrigatório dos terreiros na polícia. Paralelamente, entretanto, a Igreja Católica reorganizava-se para participar na vida política nacional. Em épocas de marchas da Família, com Deus e pela Propriedade, a Umbanda se tornou um alvo. Na década de 1970, quando aliviava a campanha católica, despertava a das religiões neo-pentecostais, que se voltaram contra os rituais afro-brasileiros com extremo vigor, apesar de terem até absorvido alguns de seus elementos, como o descarrego. Desde então, a Umbanda tem perdido seguidores nas favelas do Rio de Janeiro, onde os terreiros cada vez mais são substituídos por igrejas pentecostais. Nos sensos verifica-se tendência de queda real da ordem de 20% de brasileiros que se declaram umbandistas.

Em outras cidades, contudo, há vigor. Em São Paulo, há diversidade: da Umbanda branca, ligada ao catolicismo popular, à Umbanda de caboclo ou à traçada com o Candomblé, mais ligada às raízes africanas. Em Porto Alegre, parte significativa dos centros umbandistas se associou à tradição africana, aos chamados terreiros de Nação, dando origem a centros chamados de Umbanda cruzada com Nação.

Nestas casas de religião, os umbandistas se reúnem uma vez por semana, numa corrente mediúnica. Vestem branco, costumam estar descalços, repetem orações amparadas na Bíblia e entoam, em português, pontos inspirados na música popular e na mitologia dos Orixás. As orações de abertura e encerramento das sessões estão escritas em livros, que circulam com diminutas variações entre as várias casas. Sim, porque a Umbanda cultua as divindades espirituais, mas também se remete ao Deus cristão, princípio de todas as coisas.

Em geral, há equilíbrio no trabalho com Caboclos, Exus, Pretos Velhos... Uma sessão por mês dedicada a cada linha. Não há oferendas, mas há festas em homenagem aos Caboclos da casa. Nos dias de Pretos Velhos, há rapaduras, cachimbos, guimbas, um pouco de cachaça com melado e farofa, Pepsi Cola... Quatro vezes por ano, os umbandistas costumam se reunir nas cerimônias de cruzamento, fora do ambiente da Casa. Há o cruzamento de praia, o de cachoeira, o de mata e o de rio. Tanto nas sessões quanto nos cruzamentos, os médiuns incorporam entidades e não há segredo sobre estas incorporações. Pessoas de fora da corrente afluem para receber passes de descarrego e se consultar com as entidades que habitam o reino de Aruanda e vêm ao nosso mundo. Cada casa tem autonomia, mas há um conjunto de regras e princípios éticos que precisam ser respeitados. E as federações fiscalizam.

A Nação é uma variação do candomblé original. Há diferentes tradições inspiradas nas etnias africanas: Jeje, Ijêxá, Oyó, Cabinda. Elas podem se cruzar e formar linhagens inteiras de Pais ou Mães de Santo: Jeje com Ijêxá, Jeje com Oyó, e assim por diante. De cada combinação deriva um ritual diferenciado. Os Filhos de Santo permanecem sempre ligados à tradição na qual foram preparados, mas quando saem da casa adquirem certa autonomia na condução do ritual. Por isso, mesmo dentro de uma tradição, pode haver variação, de uma Casa para a outra. Pouco está escrito, toda a tradição é oral. Não há orações nem pontos, mas rezas, e estas são cantadas ao som dos atabaques e nos dialetos africanos. Para cada reza, há um passo de dança. Associados, contam a história simbólica de um Orixá. Assim, é uma linguagem mnemônica coletiva não apenas oral e musicada, mas também corporal, como registra a etnomusicóloga Ângela Lühning. Uma memória que não se expressa e não se transmite racional ou intelectualmente, mas sensorialmente, gestual e oralmente, em faixa paralela à tradição cultural ocidental e com poderosa capacidade de adaptação ao meio e ao tempo. A predileção dos Orixás por Pepsi Cola quando em acheiro - estado no qual eles interagem mais com as pessoas, brincam, falam como crianças - é um exemplo desta capacidade de adaptação e de hibridização.

Não há correntes mediúnicas, mas rodas de batuque. Os batuqueiros vestem-se com roupas cerimoniais com as cores e guias de seus Orixás de cabeça, isto é, os santos que os governam. Admite-se que as características físicas e psicológicas dos Santos se reflitam nos filhos, valendo para toda uma vida. Assim, os filhos de Oxum tendem a ser ligados à família, adoram penduricalhos de ouro, podem ganhar uns quilinhos a mais e costumam ser chorosos e emotivos. Os filhos de Xangô podem ser azedos, meio mandões, um tanto manipuladores, mas em geral muito justos. Os filhos de Iansã exalam sensualidade. Os de Ogum têm temperamento alegre, irascível, franco e transmitem força física. E assim por diante. Como há Orixás velhos e novos, a idade também reflete. Assim, filhos de Orixás velhos, mesmo quando pessoas jovens tendem a ser reclamonas e movimentam-se "arrastadamente", enquanto os filhos de Orixás novos tendem a ser elétricos e tagarelas. Os batuqueiros jamais sabem quando e como se ocupam com os Orixás. Esta ocupação apenas acontece no ambiente regrado dos batuques, festas coloridas e animadas que varam a madrugada e só acontecem mediante a formalidade de um registro no posto policial mais próximo. Há fartura de comida ritual: canja, arroz com galinha, assados... Os batuques acontecem no dia seguinte a uma cerimônia de matança, quando se procede o sacrifício de aves, carneiros e cabritos. É por meio deste sacrifício que o Orixá se alimenta, se renova, fortalecendo o seu filho e a própria casa. A cada dois anos, um filho participa deste ritual, depois do qual ele precisa ficar alguns dias recolhido a uma total frugalidade: dorme em esteiras no chão, não pode lavar a cabeça, nem ver a luz do sol, nada de celulares, computadores, livros ou televisão. Só meditação, descanso e comilança.

O cruzamento entre a Umbanda e a Nação é uma das explicações para a vitalidade das religiões afro-brasileiras. Numa mesma casa, seguidores da Umbanda podem não freqüentar a Nação e vice-versa, mas, em geral, as práticas se retro-alimentam. Indivíduos estranhos à estética e aos conceitos da cultura africana podem começar a ganhar intimidade com elas justamente pela porta de entrada da Umbanda, que soa menos exótica, menos estranha. Por sua vez, a Umbanda agrega ao espaço da Nação às noções de caridade cristã e de progresso espiritual, estranhas ao universo africano. A Umbanda tem grupos de estudo da doutrina e empenha-se no desenvolvimento da mediunidade. Sobre a Umbanda, escreve-se, psicografa-se, publica-se. Na Nação, não se estuda; se vivencia, se aprende fazendo, vendo e ouvindo os outros: a mediunidade não se desenvolve, acontece. E dela o indivíduo não tem consciência. Na Umbanda, os problemas pessoais são resolvidos pelo exercício continuado da mediunidade, da prática da caridade e pelo estudo da doutrina, como no kardecismo. Na Nação, fazem-se trabalhos. O jogo de búzios desvenda o futuro, responde enigmas, orienta decisões e sugere feitiços.

Sim, pode haver mistificação, mercantilização, exploração de pessoas ingênuas, práticas maldosas. Mas também há gente ética. É uma questão de foro íntimo, de consciência individual. Algo que o mercado, para usar expressão em voga, regula. Pais e Mães de Santo têm reputações. E o falatório constante é essencial nesta cultura oral.

A Nação não estabelece universalismos morais. A noção de pecado é fluída, quase inexistente. Os próprios Orixás são arquétipos repletos de qualidades e defeitos, como qualquer ser humano, numa composição muito próxima aos deuses do Olimpo dos gregos antigos. Não há medo de punição após a morte. Paraíso e Inferno estão presentes na vida real, no aqui e agora. Como registra o sociólogo Reginaldo Prodi, são religiões que aceitam o mundo como ele é, as pessoas como elas são. Não há preconceito contra homossexuais ou prostitutas, contra o sexo antes ou depois do casamento, contra mães solteiras ou seja lá o que for. Não há preconceito racial. Não há nem mesmo exigência de exclusivismo. E por sinal, pessoas que professam outras crenças podem ser vistas consultando o jogo de búzios. E na Umbanda, encerra-se uma sessão com a frase " salve os filhos de fé e os que não têm fé também". Nada de exclusivismos.

O universo amoral da Nação, libertador, sensual e focado na fruição do presente, quase que como uma versão pós-moderna do estoicismo pré-cristão, penetra a Umbanda pela mão das Pombas Giras e dos Exus. Inicialmente temidos pelos seguidores da Umbanda branca, mais kardecista, justamente em função de seu relativismo moral, hoje admite-se que os Exus não são maus a priori. Eles se moldam à forma como são invocados, à maneira como são tratados. Como a Umbanda, porém, encampou a noção de reencarnação e de evolução espiritual do kardecismo, um Exu de luz pode dizer "não" ao exercício do dano ou a excessos perniciosos. E admite-se existirem Exus que mesmo revelando-se embriagados e disformes quando se materializam, são capazes de extraordinárias previsões ou orientações recheadas de conteúdo humanístico.

O Exu é a porta mais ativa de comunicação entre a Umbanda e a Nação. Pertence à Umbanda, mas, uma vez por ano, para ele se mata no prato, isto é, se sacrificam animais. Uma exceção, portanto. É esta cerimônia que abre os caminhos de uma casa cruzada e que permite o início dos trabalhos da Nação. É o Exu, também, o canal mais dinâmico de comunicação com o entorno contemporâneo. O Exu fala a linguagem das ruas, fala a linguagem do povo, e aprende rapidamente o novo. Um Exu e uma Pomba Gira conhecem todas as paixões da época com a qual convivem. Conseguem até mesmo absorver o sentido da tecnologia. O Exu chama um celular de "trim trim", sabe o que é e pode até usá-lo, se necessário for, o que é impossível para um Caboclo.

Enfim, entre Umbanda e Nação, longe de uma ode ao hedonismo ou à falta de responsabilidade para com o Outro. Embora a Nação ensine que cada um deve lutar para realizar os seus desejos na vida presente, não se estimula a promiscuidade, a mentira, a traição e a preguiça. Incesto, violências e pedofilia não são tolerados. Se aceita o indivíduo livre para fazer suas opções e não se discrimina, mas sublinha-se que toda opção importa numa perda e todos precisam assumir responsabilidades. Assim, quem promove o mal, o dano contra outrem, potencializa as chances de atrair também o mal contra si. Os Orixás funcionam como guias espirituais e procuram orientar seus filhos a fazer o bem, a não prejudicar os outros, a estudar, a trabalhar, a cuidar bem de sua família, a fugir dos riscos da vida, como drogas ou a promiscuidade. Trata-se de um diálogo Orixá-crente, eventualmente mediado pelo Pai ou Mãe de Santo, mas sempre personalizado, adaptado a cada indivíduo.

Enquanto a Umbanda esforça-se por adotar e construir uma base doutrinária, um centro de convergência, hierárquico e conceitual, a Nação é essencialmente estruturada na fluidez, na dispersão, como convém, aliás, aos tempos pós-modernos. Ancestral herança africana hibridizada no Brasil moderno. Num tempo em que o conceito de autonomia é a senha - do indivíduo que rege sua própria carreira profissional, aos automóveis, computadores pessoais e celulares que fazem de tudo, já acessando a Internet, passando pela possibilidade crescente do indivíduo de escolher seu destino, de trocar suas identidades culturais -, a explosão de livre-arbítrio individual possibilitada pela Nação e a independência de cada terreiro figuram na instância do ultra-moderno. Para a Umbanda, a Nação é ao mesmo tempo tradição e ultramodernidade. Para a Nação, a Umbanda é um porto seguro, uma ponte com a tradição da cultura ocidental e um arcabouço referencial ético.

Se a Nação conhece o princípio da caridade pela conexão com a Umbanda, as noções de solidariedade e interatividade lhe são estruturantes. É impossível organizar-se um batuque sem o concurso voluntário das pessoas. Todos trabalham. Todos exercem uma função. Cuidar da mesa, lavar o chão, segurar os animais, depenar as aves, cozinhar, integrar a roda... É uma verdadeira manufatura que só se concretiza porque se estabelece uma rede de solidariedade. Todos participam e colaboram. Não há assistência passiva num batuque. E o mais incrível é que esta organização se dá quase que espontaneamente, sem que haja um comando, uma gerência a distribuir tarefas. A inspiração parece ser comum àquela dos mutirões populares dos homens livres na ordem escravocrata, descritos por Maria Sylvia de Carvalho Franco.

Em sua recente passagem por Porto Alegre, Christopher Hitchens, para quem no mundo contemporâneo as grandes religiões monoteístas esgotaram o seu modelo e perderam a razão de existir e para quem a religião em geral a tudo envenena, propôs-me, quando conversávamos sobre a pertinência do ateísmo, a mencionar uma religião que não promovesse a submissão da mulher ao homem, a diluição do indivíduo e da liberdade em face de um arcabouço moral aplastante. Mencionei as religiões afro-brasileiras, que além do exposto até aqui, apresentam grande número de mulheres e até gays na condição de Mães ou Pais de Santo. Hitchens nada sabia sobre estas religiões.

Não há religião perfeita, nem livre de desafios. Não creio que uma seja melhor que outra. Religião é questão de fé e esta é uma decisão de foro íntimo. Registro apenas que as religiões afro-brasileiras ocupam lugar importante em nossa cultura e podem também ser reveladoras dos mecanismos pelos quais a sociedade brasileira consegue com razoável dose de sucesso sustentar historicamente um diálogo intercultural interno e externo, quando isto parece ser dificílimo para a maior parte das culturas modernas.

Evidentemente, toda prática religiosa que se ossifica em dogmas e se entrincheira na intolerância está em choque com a liberdade, a ciência e os direitos humanos. Disto não decorre que as religiões tenham perdido todas as suas funções, mesmo em face de uma utopia neo-iluminista. Camille Paglia, atéia assumida, acredita que a religião pode preencher um papel importante na disponibilização de valores referenciais do humanismo, o que não seria pouca coisa numa sociedade na qual se expande o consumo de massas e onde o materialismo se afirma velozmente, contribuindo para uma crise ética. Libertária radical, fico imaginando o que ela acharia de uma prostituta ultra-sensual, como a Pomba Gira Maria Padilha, por quem nove homens esperam na porta de um cabaré, convertida em entidade espiritual venerada numa religião.

Paglia conecta-se à herança da contracultura e da revolução dos costumes de 1968. Pode, por isto, ser atéia e reconhecer que razão e irracionalidade não apenas não são instâncias incompatíveis, como convivem necessariamente na dimensão do humano. Com ela estão pensadores como Michel Maffesoli, para quem a lógica de um sistema organizado de símbolos nunca é capaz de cobrir todo o domínio a que ele supostamente se refere, havendo sempre um resto, um limite, uma fronteira além da qual o racional e o irracional convivem.

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