quarta-feira, setembro 26

PASSEIO SOCRÁTICO Por Frei Beto






Tudo sobre a Vida





Frei Beto Carlinhos Brown
Gostei deste texto que me enviaram, daí resolvi colocá-lo aqui para vocês.




PASSEIO SOCRÁTICO






Por Frei Beto Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza,ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc.




A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos.




O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais - manipular o alimento que ingere.




A refeição exige preparo,criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico.




A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte.




Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta pela
toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis.




Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela. Marx já havia se dado conta do peso da geladeira.




Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens.




Portanto, em si o homem não tem valor para nós." O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social.





Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão.




Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma.




Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interação matéria-espírito.




Ora, se dizem a nós que um aborígene cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém.




Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia?




Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em cinderela...




Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.





Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos.




E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.




Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados,é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia.






Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc.




Comércio deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas.






Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de vizinhança, como ainda ocorre na feira.Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados.




Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo.





"Nada poderia ser maior que a sedução" - diz Jean Baudrillard -"nem mesmo
a ordem que a destrói."




E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da
cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja.
Vou com freqüência a livrarias de shoppings.




Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo,
vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo.






Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas.




E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".

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