Tudo sobre a Vida
Mulheres de etnia Cigana
A etnia cigana em Portugal Paulo Machado*
A primeira observação sublinha a dificuldade que, por oposição ao que sabemos sobre outras etnias, existe na identificação da comunidade cigana em Portugal. Excluída a nacionalidade, porquanto não existe uma nação cigana de onde sejam oriundos, o elemento etno-rácico está fortemente diluído pelo abrandamento das estratégias endogâmicas que caracterizam amiúde as minorias étnicas, sendo inclusivamente difícil formular um perfil somático ou antropofísico distintivo. Resta, pois, a identificação cultural dos próprios, contrastando, em muitos casos, com a que é feita pêlos não ciganos.
Acresce o facto de a identidade do povo cigano parecer ser um exercício redutor, face à diversidade intra-étnica que muitos sublinham.
Em definitivo, parece comprometida a identificação de uma etnoclasse cigana. Quando muito, poderá falar-se de uma etnicidade, pouco homogénea, mas muito actuante como factor de clivagem social.
A segunda observação recai, inevitavelmente, na ausência de estudos sucessivos e aprofundados sobre os ciganos portugueses, seguindo de perto o que acontece nos países onde a presença de ciganos se encontra referenciada.
A segunda observação recai, inevitavelmente, na ausência de estudos sucessivos e aprofundados sobre os ciganos portugueses, seguindo de perto o que acontece nos países onde a presença de ciganos se encontra referenciada.
Para o conjunto dos países dos Estados membros do Conselho da Europa (acrescentada a Finlândia e retirada a Turquia), estimou-se que no início da década de 80 existiriam cerca de um milhão de ciganos.
Maioritariamente concentrados na Europa do Sul, e a Leste — sob cujos países subsiste uma incómoda falta de informação —, e sabendo-se que a taxa de crescimento demográfico anual deste povo pode rondar os 5%, como demonstraram os estudos efectuados para a vizinha Espanha e assim revela a sua estrutura populacional, esse volume demográfico poderá ter duplicado em pouco mais de 20 anos.
A terceira observação preliminar pretende sublinhar a contradição entre, por um lado, a ausência de estudos, de informação actualizada, a não sequência, em Portugal, de monografias tão exaustivas quanto a de Adolfo Coelho ("Os Ciganos de Portugal"), publicada em 1892, e, por outro lado, o facto histórico de se tratar da minoria étnica com uma presença secular no nosso País, cujas referências remontam ao século XIV, o que sustenta fortemente a hipótese de serem os ciganos a comunidade étnica com quem há mais tempo convivemos em território nacional.
Uma presença secular marcada pela exclusão
Esta presença, alimentada por movimentos migratórios intensos a partir da Estremadura espanhola, sobretudo entre os séculos XIV e XVI, ficou marcada desde cedo por uma discriminação severa, consagrada na ordem jurídica interna — castigos, degredo, expulsão, condenação à morte, interdição de residência — em sucessivas disposições (que culminam processos explícitos de iniquidade social), e que cedo extravasou para uma representação colectiva (que resume um processo oculto de exclusão) que se poderia definir como defensiva, relativamente a este povo de origem indo-asiática.
Os exemplos de discriminação jurídica abundam desses tempos imemoriais até aos nossos dias, como no caso dos regulamentos policiais, não obstante terem sido declarados inconstitucionais.
Neles se defende uma especial vigilância sobre os nómadas, entenda-se, sobre os ciganos, dada a sua propensão para um certo tipo de itinerância.
Convém sublinhar que só a partir de 1996 foi erradicado do Relatório Anual de Segurança Interna um quadro estatístico, no qual os suspeitos das práticas de certa criminalidade eram caracterizados segundo a raça: "negros, ciganos e brancos"!
A última década foi, de resto, marcada por um recrudescimento da animosidade de certas comunidades rurais, sobretudo do Norte e Interior do País, relativamente aos seus vizinhos ciganos, sob o pretexto de serem estes os principais protagonistas do tráfico de droga, e que conduziu nalguns casos ao surgimento de milícias populares e a uma assumida indisponibilidade por parte de alguns executivos camarários para os realojar, ao abrigo de programas de erradicação de barracas.
Na cronologia da história de Portugal, sinalizamos factos como a Lei de 28 de Agosto de 1592, a qual, concedendo um prazo limitado para a saída dos ciganos de Portugal, ameaçava os que resistissem com a pena de morte, executada sem apelo nem agravo.
No futuro, sinalizar-se-ão sobre a história social os dramáticos acontecimentos de Cervães, Francelos ou Vila Verde, ocorridos em 1996 e 1997, ao arrepio do Estado de Direito Democrático, mas tão elucidativos dos antagonismos sociais que os ciganos suscitam, ainda hoje, em muitas comunidades.
Passado, presente e futuro
Actualmente existirão cerca de quarenta mil cidadãos portugueses susceptíveis de serem considerados como ciganos, aos quais a Lei Portuguesa concede direitos e deveres iguais aos demais cidadãos.
A Resolução do Conselho de Ministros n° 157/96, de 19 de Outubro, criou um Grupo de Trabalho para a Igualdade e Inserção dos Ciganos, sob a égide do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (ACIME).
Valendo-se da pouca informação disponível, muito dispersa e circunscrita a algumas comunidades ciganas, este Grupo de Trabalho produziu o mais recente e sistemático levantamento das condições sociais dos ciganos portugueses.
A expectativa de que um inquérito, lançado em 1997 pelo Observatório das Ciências e Tecnologias do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) às 4221 freguesias, traria à luz do dia mais elementos, foi gorada por uma taxa de respostas de 26% — das quais 770 em branco —, reforçando a ideia de menos interesse pelo quotidiano destes cidadãos.
À parte estes problemas, e em traços muito gerais, os contrastes sociais e culturais ainda hoje existentes permitem assinalar uma vulnerabilidade acentuada à pobreza, facto que o acesso de muitas famílias ciganas ao Rendimento Mínimo Garantido e aos programas de realojamento dramaticamente demonstra.
À parte estes problemas, e em traços muito gerais, os contrastes sociais e culturais ainda hoje existentes permitem assinalar uma vulnerabilidade acentuada à pobreza, facto que o acesso de muitas famílias ciganas ao Rendimento Mínimo Garantido e aos programas de realojamento dramaticamente demonstra.
Com efeito, a marginalização, a guetização, a desvinculação estrutural face ao mercado formal de emprego, o analfabetismo, a inserção profissional prematura no contexto da economia informal, o retraimento ao nível da participação socio-política, são regularidades que marcam, ainda hoje, a realidade social vivida pela gente cigana.
Talvez o grupo étnico cigano acumule, de forma ímpar, um conjunto de dimensões de contraste social e cultural em relação à sociedade portuguesa em geral.
Vejamos sinteticamente quais são os mais significativos contrastes.
Num estudo sobre a população cigana do distrito de Lisboa (realizado em 1988), residiriam aproximadamente 6.000 indivíduos de etnia cigana, 44% dos quais com menos de 14 anos. A percentagem dos que viviam em barracas era de 57%, dedicando-se mais de 2/3 à actividade de venda ambulante (na generalidade sem licença para tal).
Num estudo sobre a população cigana do distrito de Lisboa (realizado em 1988), residiriam aproximadamente 6.000 indivíduos de etnia cigana, 44% dos quais com menos de 14 anos. A percentagem dos que viviam em barracas era de 57%, dedicando-se mais de 2/3 à actividade de venda ambulante (na generalidade sem licença para tal).
Os jovens com mais de 16 anos e os adultos e idosos eram maioritariamente analfabetos.
No Alentejo, onde em 1993 se estimava existirem mais de 3.000 ciganos, os dados socio-demográficos apurados não diferem substantivamente destes.
A Norte o cenário repete-se, com pequenas e não significativas diferenças.
No domínio da educação formal, o esforço que entidades oficiais e não governamentais têm desenvolvido no sentido da valorização da literacia junto da comunidade cigana, traduzido por um crescente número de crianças que se matriculam no 1° ciclo — muito embora se estime que menos de 2/3 das crianças em idade escolar estejam matriculadas —, não é depois acompanhado por uma permanência na escola nos ciclos subsequentes, muito embora o número de alunos no 2° Ciclo tenha duplicado entre 1992 e 1996, e o número de alunos no 3° Ciclo tenha aumentado 65% neste mesmo período.
No domínio da educação formal, o esforço que entidades oficiais e não governamentais têm desenvolvido no sentido da valorização da literacia junto da comunidade cigana, traduzido por um crescente número de crianças que se matriculam no 1° ciclo — muito embora se estime que menos de 2/3 das crianças em idade escolar estejam matriculadas —, não é depois acompanhado por uma permanência na escola nos ciclos subsequentes, muito embora o número de alunos no 2° Ciclo tenha duplicado entre 1992 e 1996, e o número de alunos no 3° Ciclo tenha aumentado 65% neste mesmo período.
A sedentarização induzida pelo realojamento, no âmbito do PER e do PER/famílias, designadamente nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto, onde centenas de famílias ciganas conquistaram já o direito a uma habitação condigna, trouxe problemas novos de convivência intercultural porta com porta, cujo impacte está ainda por estudar em toda a sua plenitude.
Abrem-se, apesar disso, perspectivas de intervenção social, até aqui de muito difícil concretização.
Abrem-se, apesar disso, perspectivas de intervenção social, até aqui de muito difícil concretização.
Multiplicam-se projectos de saúde comunitária, de alfabetização para jovens e adultos, de mediação social, de formação profissional, cuja maior dificuldade é o absentismo e a desistência dos destinatários.
Ao abrigo de um protocolo entre o ACIME e o MCT, foram lançados recentemente 13 projectos de investigação sobre a comunidade cigana que proporcionarão um acervo teórico e empírico indispensável para melhor se conhecerem o(s) modo(s) de vida dos ciganos portugueses.
* Paulo MachadoSociólogo. Docente do Curso de Sociologia da UAL
Sem comentários:
Enviar um comentário