Imagens da África
Ricardo Rangel, fotógrafo e jornalista moçambicano, estava de férias no Brasil quando, de passagem por Florianópolis, foi conferir as exposições fotográficas locais.
Descobriu o trabalho de Olívio Lamas sobre o bar de Aldírio Simões.
O Papel Jornal decidiu conferir.
O trabalho de Rangel já foi mostrado em diversos países da Europa e nos Estados Unidos.
Expôs junto com Sebastião Salgado em Paris.
Tem diversos livros editados. Fundou e dirige o Centro de Formação Fotográfica, em Maputo, capital de Moçambique.
Disse que pretende expor no Brasil, mas que ainda não tem certeza se a mostra “Iluminando Vidas” terá o país em seu caminho.
Teu trabalho no foto jornalismo está centrado nas pessoas?
Principalmente.
O homem - e coloco aqui as mulheres - é o centro de todas as coisas.Há um trabalho de denúncia, focado nas injustiças sociais, opressão, prepotência, nos ladrões.
Lá também temos muitos corruptos.
Como era a imprensa no período colonial de Moçambique?
Havia uma censura muito forte contra o relato dos fatos.
Então para denunciar alguma coisa o repórter tinha que fazer o texto de maneira que os homens da censura não percebessem.
Tinha que dar muitas voltas.
Esta era a grande luta dos jornalistas.
E eu costumava dizer ‘no dia em que nós alcançarmos a liberdade a imprensa, vocês não vão saber escrever’. E de fato deu-se isso.
Depois da independência continuavam escrevendo como se a censura ainda existisse, pois já estavam acostumados.
E eu dizia ‘agora vocês tem de escrever directamente’.
Você teve imagens censuradas?
Muitas.
Tenho livros onde praticamente a metade são imagens que foram censuradas.
Eu tirava uma foto de um vendedor de rua, esfarrapado, e eles não deixavam publicar.
Porque em Portugal eles diziam que estavam a impulsionar o país, a civilizar nossa gente.
Mas não era nada disso. Uma foto que só foi publicada depois da independência mostra duas portas de banheiro.
Em uma está escrito “homens” e na outra “serventes”.
Mostra o preconceito escondido nos pequenos detalhes.
Depois de 1975 é que surgiram as fotografias que não haviam sido publicadas, como as da Rua Araújo (NR: tema do livro “Pão nosso de cada noite”, publicada em Outubro de 2004, com imagens dessa famosa área de prostituição de Maputo, nos anos 60 e 70).
Depois da independência a imprensa passou a ter mais liberdade?
Sim.
E é preciso dar importância a uma coisa que muitos não dão.
É preciso conhecer o passado para compreender o presente.
As experiências do passado ensinam muito às novas gerações.
De maneira que houve liberdade de imprensa, houve aquela fase do reflexo condicionado que os jornalistas trouxeram do período colonial, e depois começam a aparecer os jovens jornalistas.
Que rompem com tudo e começam a escrever de uma maneira desalmada.
Se escrevia tudo, inclusive palavras obscenas, porque era liberdade de imprensa, então tudo era permitido. E na fotografia também.
Qualquer coisa era publicada.
Houve uma desorientação, como em Portugal, depois que caiu a ditadura.
Foi uma era de excessos.
Depois a coisa voltou à normalidade.
Mas para mim, e para outros jornalistas de meu tempo, faltou parar e pensar.
Pois já não havia a opressão do governo colonial, nem uma polícia política, nem racismo, o governo era democrático, fomos nós que o escolhemos.
Mas continuava a existir injustiças.
E agora vamos denunciar quem?
O gajo que está a me pisar é o gajo que eu escolhi.
Não é mais como no tempo colonial, quando eu não escolhia o opressor.
Então tivemos de recomeçar a denunciar.
E isso custou a vida de um grande jornalista, que investigava casos de corrupção, Carlos Cardoso.
Lá os corruptos tem poder, aqui também devem ter.
O foto jornalismo também mudou depois da independência?
Naquela época Moçambique era um país com 90% de analfabetos.
Então as pessoas não liam jornais, porque não sabiam ler.
Isso aumenta a importância da imagem nos periódicos.
O governo chegou a reunir a imprensa para pedir que fossem usadas mais imagens do que textos.
Porque um analfabeto lê a minha imagem.
O povo não sabia ler mas sabia ver, e começou a ser educado através das imagens.
A certa altura o Ministério da Informação resolveu criar um jornal voltado para as pessoas que viviam no campo.
Até hoje a grande maioria da população vive no campo.
Então o governo criou o jornal e passou a mandar moçambicanos estudarem jornalismo aqui no Rio Grande do Sul.
Cerca de dez jovens vieram para o Zero Hora.
Esse intercâmbio serviu também para formar jornalistas para rádio e televisão, voltados para o trabalho junto ao campo.
E fotografar o campo não é como fotografar o mato.
Tem de conhecer, senão a foto não serve de nada.
Existem formas de se mostrar uma plantação, um a espiga de milho, um animal, para que as pessoas leiam essa imagem.
E como é a TV em Moçambique?
Televisão é fotografia, cinema é fotografia.Partem da fotografia.
Então quando surgiu a televisão em Moçambique o pessoal da reportagem começou a contratar ‘cameramens’, e era um desastre.
Então eu fotografava, em minha casa, a tela da televisão.
Registrava aquelas asneiras todas.
Houve uma altura em que eu estava tão chateado que disse ao ministro - que havia dado muita força para a implantação das tvs - ‘quando a televisão quiser contratar cameramens, mandem tirar um curso de fotografia’.
Foi uma luta muito grande, mas eu ganhei.
E melhorou muito a nossa televisão.
Os melhores ‘cameramens’ que apareceram foram os que passaram pela Escola de Fotografia, que aprenderam as bases.
Nos conte um pouco de sua experiência na formação dos profissionais.
Nessa época foram me chamar para trabalhar no maior jornal de Moçambique, o Notícias.
E eu fui, para formar fotógrafos e trabalhar no jornal também.
Sendo o principal jornal do país ele precisava de imagens aceitáveis na primeira página.
Trabalhei lá durante cinco ou seis meses.A escola ou Centro de Formação Fotográfica de Maputo foi criado em 1984, época em que a nossa doutrina era o marxismo-leninismo.
Ela foi financiada pelo governo italiano, pois Moçambique não tinha dinheiro.
Nosso governo queria que os cursos fossem gratuitos, e eu disse que isso estava errado.
Ainda hoje não é o subsídio do governo que nos faz seguir em frente.
O valor é muito baixo, pois o país é pobre.
Os alunos pagavam pelo curso, naquela época, o equivalente a duas caixas de papel fotográfico.
Ou seja, tem que pagar, mas era um valor simbólico.
Mesmo agora, sob o regime capitalista, os alunos não pagam o que a gente gasta com eles.
Em contrapartida, o trabalho que eles realizam lá dentro fica para a escola.
Com isso nós construímos um banco de imagens.
E quando comercializamos alguma fotografia de um aluno a única coisa que ele recebe é o crédito.
É o pagamento pelo uso de máquinas, filmes, papéis, instalações, laboratórios.
Nos fale de seu livro que critica o trabalho fotográfico dos jornais.
Chama-se ‘Foto jornalismo ou Foto confusionismo?’
Fui reproduzindo coisas absurdas que saiam nos jornais, anotando as datas.
Os jornais visados eram quatro.
E eu os insulto mesmo.
Quando o livro saiu eles não comentaram nada.
Como é que o editor deixa passar isso?
Como é que o chefe de redacção aceita isso?
Não cito os nomes, mas aponto as bobagens feitas.
Às vezes a foto estava boa, mas a legenda era muito ruim.
Será que não havia nem um dicionário na redacção?
Uma das coisas mais difíceis é fazer a legenda de uma fotografia, principalmente se a imagem já diz tudo.
Então tem de criar, tem de ter imaginação, garra.
Expressões tais como “no pormenor” ou “como a imagem documenta” deveriam ser proibidas nas legendas.
*Parabéns a este Homem íntegro na sua luta, amigo do seu amigo, profissional de ÉTICA total, a quem eu devo muito,pela sua grande amizade que nutre pela família Gouvêa Lemos e de quem nos sentimos muito honrados por tal, assim como à sua Mulher Beatrice.
Madalena Gouvêa Lemos
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