quarta-feira, maio 14

Meu pai, Gouveia Lemos

Terça-feira, 12 de Fevereiro de 2008
Gouveia Lemos

Uma parte da "minha estória" de vida para dividir com vocês...
7 de Outubro 1962
Ao romper do dia, a data era saudada na redação do jornal com brindes e hurras: estava sendo lançado o primeiro número da Tribuna em Lourenço Marques, capital de Moçambique.
À frente de uma elite de jornalistas, e contratado com plenos poderes para criar algo novo na imprensa local, Gouveia Lemos via nascer, junto com o sol, a realização de um velho sonho.
O dia começava abafado em Lourenço Marques. Gouveia Lemos (o nosso Veríssimo) abria a porta de casa exausto mas feliz.
O sol despontava no oceano Índico, o bairro Bico Dourado ainda parecia dormir.
Respirou fundo antes de entrar, olhou uma cesta com mantimentos na calçada junto à porta, deu dois passos no corredor escuro, quase se chocou com a negra Mamana Rabeca.
Bom dia, Mamana, que cesta é essa aí fora ?
O homem deixou aí prás crianças, patrão.
Que homem, Mamana ?
Não sei, patrão, é o homem da rua. Outra vez, o homem da rua – saiu murmurando Veríssimo. Sem sono, sentou-se numa poltrona, olhando a sala ainda na penumbra.
A Madalena e os cinco filhos ainda dormiam.
Acendeu o abajur de pé alto, e abriu o jornal.
Trouxera-o debaixo do braço ainda cheirando a tinta fresca.
Era o primeiro exemplar da Tribuna que ele ia guardar como um troféu.
Já o lera e relera, conferira linha por linha, cuidadoso como nunca, sob a paranóia da censura. Relia agora com mais calma, e mais prazer as páginas bem diagramadas, arejadas, as matérias ousadas com belas fotos, enfim, um jornal independente, feito inteiramente a seu critério. Olhava-o como pai que lambia a cria.
Tinha finalmente nos seus braços não apenas um jornal como outros onde colaborara ou fora diretor durante uns sete anos: tinha agora no seu colo um filho que ele gerara, do qual fora pai e mãe, após uma gravidez sofrida de meses.
E que acabara de trazer à luz, após um parto laborioso que se estendera por toda a madrugada, sob as ameaças sinistras dos censores.
Jornalista rebelde, difícil de domar, e um dos profissionais mais visados pela ditadura, fora ousado demais ao requerer licença para fundar um jornal inteiramente confiado à sua direção.
Após meses de negaças, jogo de gato e rato, promessas não cumpridas, edições prontas atiradas ao lixo por impedimentos de última hora, saíra a licença.
Com cinco filhos e mais um a caminho, e sem salário, valia-se da própria coragem e do apoio moral e material de amigos intelectuais – Rui Knopfli, José Craveirinha, Eugénio Lisboa, Carlos Adrião Rodrigues e família.
E do misterioso homem da rua que diariamente deixava a sua contribuição de mantimentos. Valia-se também do apoio não menos nobre da Mamana, uma negra de alma iluminada e coração imenso, que há meses trabalhava sem receber salário.
E que, vez por outra, levava discretamente para a sua palhoça as crianças que vira nascer e ajudara a criar para lhes dar o lanche que estava faltando na casa do patrão.
A Tribuna, estimulada por tanta solidariedade, nascia sob a luz da esperança.
Havia perspectivas de abertura por parte do Ministro do Ultramar e do Governador de Moçambique.
A partir dos primeiros números, as matérias do novo jornal faziam sucesso.
Com habilidade, denunciava a detenção injusta de um poeta acusado de crimes políticos, criticava o código de trabalho rural do ultramar, publicava entrevista com Ben Bella sobre a independência da Argélia, e apelava aos vereadores de Lourenço Marques para que olhassem menos para os bairros de luxo, e olhassem mais para os quatro quintos da cidade feitos de caniço, construíssem bairros econômicos, distribuíssem água canalizada, luz, e fizessem saneamento.
O jornal começava avançado demais para o gosto dos poderosos.
Com uma agravante: o nascimento da Frelimo com o objetivo de lutar pela independência da colônia, e a perspectiva de uma guerrilha igual às da Guiné e Angola começava a despertar preocupações.
Resultado : em menos de um ano, o jornal sem verbas de propaganda, sem crédito, sem tinta e papel, passava para as mãos salazaristas do Banco Nacional Ultramarino.
O sonho durara pouco.
Daqui em diante, Gouveia Lemos não tinha alternativa.
Tinha que voltar a um jornalismo melancólico sob duas censuras simultâneas : a do jornal (a que mais detestava) e a do governo.
Entretanto, a Frelimo inicia a guerrilha em Moçambique.
Há pressões da ONU, dos EUA, Rússia e Grã-Bretanha pela auto-determinação do ultramar português.
Os Bispos da Beira e de Nampula em Moçambique denunciam crimes das autoridades contra os direitos humanos e sofrem perseguições.
As perseguições estendem-se a freiras e missionários.
A partir de novembro de 1964, Gouveia Lemos assume o cargo de diretor técnico do Notícias da Beira.
Em 7 de setembro de 1968, Salazar sofre um acidente, e é afastado do governo em conseqüência de um hematoma cerebral.
Para a oposição, é um 7 de setembro que prenuncia a libertação da ditadura.
Assume o governo Marcelo Caetano de tendência liberalizante.
Na direção do Notícias faz-se sentir essa tendência.
Em 1972, acontece na cidade da Beira uma morte que atrai suspeitas : o corpo de uma jovem cai do alto de um edifício.
Suspeita-se de assassinato.
O réu estaria entre a oficialidade do exército português envolvido na guerra colonial.
O inquérito estava sendo abafado, enquanto as autoridades divulgavam a versão de suicídio. Gouveia Lemos manda apurar a verdade por jornalistas subalternos.
Segundo fonte limpa, trata-se de crime passional por parte de um militar casado que pretendia livrar-se da amante para evitar o escândalo de adultério.
Gouveia Lemos começa uma campanha exigindo apuração da verdade.
A campanha inicia-se com o título Cadáveres não se suicidam. Ganha repercussão, as autoridades militares reagem, pressionam o jornal, e Gouveia Lemos é intimado pela direção do jornal a calar-se. O Veríssimo (superlativo de vero – verdadeiro) que tinha a fidelidade à verdade como princípio sagrado, sentiu-se achincalhado.Era a gota d’água.
Com a saúde abalada, e tendo que fazer nova cirurgia no coração, começa a pensar em deixar de vez Moçambique, e vir para o Brasil.
Por ocasião do Natal de 1971, escreve-me uma carta de quatro páginas sobre o seu projeto de emigrar.
Lembra os dias em que esteve conosco no Rio com a Madalena numa segunda viagem a convite nosso, por ocasião da morte da filhinha caçula Maria João, vítima de malária. Começava com um desabafo: os horizontes não se abrem.
O meu entusiasmo desaparece. Pensa também em submeter-se aqui à segunda cirurgia de coração.
E diz o motivo : deixei-me tomar pelo desejo de a fazer aí, junto dos meus, com a minha mulher e os meus filhos entregues aos meus.
Perdera o entusiasmo pela profissão, e com a morte da caçulinha, perdera o entusiasmo pela vida.
Adiara a segunda operação por tempo demasiado, e encarava com realismo a perspectiva de não resistir ao último desafio que a vida lhe preparava.

Em fevereiro de 1972, Gouveia Lemos (o nosso Veríssimo) desembarcava no Rio com a mulher, cinco filhos, e a grande ausência da Joãozinho. Após catorze anos, voltava ao Brasil, tentando refazer a vida.
Vinha murcho, cansado de lutas, desgostos e decepções. Se tivesse antecipado a viagem, talvez desembarcasse com menos uma dor e mais uma criança.
Ao sorriso aberto pelo encontro com a família, juntava-se um sorriso íntimo de ironia pelos sonhos que deixara pelo caminho : exercer o jornalismo algum dia, dignamente, com liberdade.
A dura realidade é que largara uma ditadura para tentar vida numa outra ditadura.
A democracia brasileira, que ele conhecera e o encantara quando aqui esteve há 14 anos, entrara em colapso, desde 1964.
Sem perda de tempo, tinha que se abrir sobre o que mais o preocupava nesta debandada. Escolheu o irmão mais novo, o Luis Bernardo (Menau), para uma conversa reservada no Jardim Botânico.
A diferença de 13 anos entre as suas idades contava pouco, tais as afinidades que o irmão mais velho, após muitos anos de ausência, viu reveladas no mais novo : uma alma gêmea madura, inteligente, identificada com as suas idéias.
O problema da válvula mitral agravara-se, a cirurgia demasiado adiada era extremamente delicada e, com mulher e cinco filhos, o assunto da conversa não tinha tanto a ver com projetos de vida, mas com a perspectiva da morte.
Esse preâmbulo, colocado com a firmeza e a coragem de quem já conhecera muitas faces da adversidade, escureceu a vista do irmão caçula.
A aléia principal do Jardim Botânico parecia agora mergulhada em sombras.
Para mim, portanto – continuava o Veríssimo – o objetivo maior desta vinda é poder ir para a sala de cirurgia certo de que a família que eu criei, ficou entregue à família com a qual eu fui criado. Na hipótese de acontecer o pior, esse é o legado que vim trazer pra vocês.
Essas palavras sobre uma morte prenunciada, caíam como petardos nos ouvidos do irmão. A caminhada continuou, agora silenciosa, entre as palmeiras imperiais.
O Luiz Bernardo, engasgado, tentou recompor-se, ergueu os olhos seguindo o tronco alto das palmeiras, procurando algo, uma luz vinda lá de cima, que dissipasse aquele pesadelo.
Sentaram-se à sombra de uma jaqueira, de olhar vago sobre as vitórias e ninféias do grande lago, onde as águas refletiam o azul do céu..
Em volta, o jardim resplendia ao sol, falava de vida, era um festival de cores. Não há-de ser nada - concluiu um deles. Não há de ser nada – repetiu o outro.
Dias depois, aconteceu a cirurgia.
Alívio geral : segundo o cirurgião, fora um sucesso.
Com a recuperação já adiantada, combinou-se a celebração: seria no Domingo de Páscoa, no próprio apartamento do Veríssimo, recém montado em Ipanema.
Estávamos de saída com as crianças, abro a porta, chamo o elevador, o telefone toca. Do outro lado, a voz de uma empregada informa lacônica e cortante : Senhor Vítor, o senhor Veríssimo acaba de falecer.


--- § ---
Estamos no cemitério. O meu irmão vai ser sepultado com os seus sonhos em cinzas.
O seu corpo está sendo velado como espólio de uma guerra perdida.
E no mesmo lugar – é duro lembrar - onde, há 15 anos, foi sepultada a nossa irmã Maria Tereza, vítima de uma encefalite virótica.
Com o casamento marcado, apartamento pronto para morar, o vestido de noiva pendurado no armário.
A maioria dos rostos pálidos de óculos escuros - porque é hábito nosso esconder as lágrimas – lançava os últimos olhares sobre aquele Dom Quixote deposto e sem armas.
Só o meu amigo surdo-mudo me aparece, lágrimas escorrendo, porque é essa a sua única maneira de me falar. Abraço-o com um abraço especial, eu também surdo-mudo, porque, perante a intensidade de certas dores, nada mais há para falar ou ouvir.
Para lá do cemitério, imagino um muro que vai até ao céu, um muro impenetrável que nos separa do invisível, um outro mundo onde a justiça seja possível.
O mundo que nos foi ensinado no catecismo da infância, procurando dar-nos um sentido à vida e à morte.
Como em todos os enterros, as conversas são evasivas, derivam para trivialidades : o tempo, a temperatura, vai chover, não vai chover, como vão os negócios, as últimas do noticiário, a política. Mas o muro continua lá com o seu silêncio pétreo, aliado à frieza dos mármores nas sepulturas. Amplo cenário de mistérios que nos encara desafiando as nossas indagações sobre os mistérios do outro lado.
Terminado o sepultamento, os convidados voltam à vida.
Lá fora, a megalópole estremece o solo, ressoa ensurdecedora como uma discoteca feita para acordá-los do pesadelo.
Na rua, a vida, afinal, continua vibrante, ainda pode ser bela na cidade maravilhosa.
Lá fora, o amanhã nos espera.
E amanhã será outro dia.
Vitor Lemos


O meu obrigado ao António Lemos (Zurique)

Sem comentários: