segunda-feira, novembro 5

A lição do rio (4) - Sidarta


Sidarta escutava.
Naquele momento, era todo ouvidos, entregando-se por inteiro à própria atenção, receptáculo totalmente vazio, prestes a encher-se.
Sentia que àquela hora atingiria a derradeira perfeição na arte de escutar.
Quantas vezes não ouvira todos aqueles rumores, a multiplicidade das vozes que vinham do rio, mas naquele dia lhe pareciam novas.
Já não era capaz de identificá-las.
Não conseguia distinguir as vozes jubilosas das choronas, as infantis das másculas.
Todas elas formavam uma só, a lamentação da nostalgia, a risada do ceticismo, o grito da cólera e o estertor da agonia.
Tudo era uma e a mesma coisa, tudo se entretecia, enredava-se, emaranhava-se mil vezes.
E todo aquele conjunto, a soma das vozes, a totalidade das metas, das ânsias, dos sofrimentos, das delícias, todo o Bem e todo o Mal, esse conjunto era o mundo. Esse conjunto era o rio dos destinos, era a música da vida.
Mas, quando ele escutava atentamente o quê cantava o rio, com seu coro de mil vozes, quando se abstinha de destilar dele o sofrimento ou o riso, quando cessava de ligar a alma a determinada voz e de penetrar nela com o seu espírito, quando, pelo contrário, ouvia todas elas, a soma, a unidade, acontecia que a grandiosa cantiga dos milhares de vozes se resumia numa só palavra, que era Om, a perfeição.
-- Estás ouvindo?
– tornou a indagar o olhar de Vasudeva.
Luminosamente resplandecia o sorriso do balseiro, pairando por cima das inúmeras rugas do semblante idoso, assim como o Om pairava por cima de todas as vozes do rio.
Luminosamente resplandecia o seu sorriso, enquanto fitava o amigo e com igual clareza luzia no rosto de Sidarta o mesmo sorriso.
Sua ferida desabrochava como uma flor.
Sua mágoa fulgia. Seu eu incorporara-se na unidade.Foi nessa hora que Sidarta cessou de lutar contra o Destino.
Cessou de sofrer.
No seu rosto florescia aquela serenidade do saber, à qual já não se opunha nenhuma vontade, que conhece a perfeição, que está de acordo com o rio dos acontecimentos e o curso da vida; a serenidade que torna suas as penas e as ditas de todos, entregue à corrente, pertencente à unidade.
Sidarta, Hermann Hesse, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968

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