TIROS PARA O AR
Por Gouvêa Lemos -A TRIBUNA (Moçambique - Década de 60)
Tenho uma idéia vaga de, em tempos da minha meninice, ter um vizinho de quinta amedrontado e maníaco, que se assustava muito com muito luar.
Por isso, em noites claras de Janeiro ou de Agosto e até de outros meses, o senhor ia ao muro do fundo que dava para a estrada e de lá punha-se aos tiros para o ar com uma caçadeira que ele tinha.
Quando o interrogavam sobre aquelas batalhas a solo, o sr. José - chamemos-lhe Sr. José - explicava que era contra os inimigos que disparava, em noites de lua cheia, ou luva nova ou mesmo com um quartozinho crescente.
Quer dizer, muita lua e o Sr. José, pum, pum, pum, desatava aos tiros para o ar - contra os inimigos.
O que tinha graça nisso era que ninguém conhecia inimigos do Sr. José que nem era mau homem, era só maníaco e amedrontado, assim um pouco palerma; não se sabia portanto de quem eram inimigos os inimigos que o afligiam, coitado do Sr. José.
Ora eu tenho reparado que ultimamente aparecem muitos artigos em alguns jornais, escritos por uns senhores que me lembram o Sr. José, lá nos tempos da minha meninice, por acaso na Beira Alta.
Não sei se é de haver lua - há lua? - ou lá porque é, sei só que nesses artigos muito vagos, nada objectivos embora conceituosissimos, se fazem acusações graves de grandes e pavorosos pecados (que devem ser mas não se sabe quais) contra pessoas muito incógnitas, muito anônimas, se calhar nem existentes.
Mas a xingação é brava e contundente.
Fala-se de traidores, tipos que são contra, vendidos, perigosos inimigos como o Sr. José dizia), mas ninguém sabe nem percebe a quem é que os tais traíram ou vão ou estão a trair, quem foi que os comprou ou vai ou está a comprar e, finalmente, de quem ou de quê eles são inimigos, a quem ou a quê eles oferecem perigos.
É um raio duma confusão!...
Se isto me aflige um pouco não é por mim, que passo adiante e leio tantas outras coisas que devo ler e não me importo: mas, como sou dos jornais e me preocupo com estes negócios de Imprensa, acho que o tal fenômeno começa a tomar forma de hábito com tendência, o que produzirá certamente larga desorganização na opinião pública, gerando-se um clima de desassossego altamente nocivo ao menos para quem precisa de dormir: qualquer dia desata tudo a comprar caçadeiras e a dar tiros de noite, "contra os inimigos".
Não está certo.
Por isso eu peço aos camaradas mais useiros nesses sustos de noites de luar, que deixem disso, não tenham medo e falem claro.
Ó senhores, devemos falar claro, pôr os pontinhos nos ii, as carapuças nas cabeças, apontar cada um a sua caçadeira para cada rés, desde que seja caso de tiroteio.
Mas não assustem ninguém, pelo menos as crianças que, ao fim e ao cabo, ainda são as que têm mais receio dessas coisas...
Há tempos até li um artigo enorme, bem destacado, com um grande título, muito bem composto, sem gralhas nem nada e não consegui perceber nicles.
Reli, ainda, quase até meio; e nada.
Mas como era colérico!
Como estava ofensivo!
Severo e iracundo, prevenia-nos contra temerosos males e denunciava autênticas feras humanas, postas de tocaia contra nós todos, os homens bons (eu, também, não me considero mau homem).
Mas afinal, o pobre do artiguinho resultava inútil, porque ninguém nos dizia contra quem era aquela cólera, quem seriam os ofendidos, que males nos ameaçavam e onde estavam as feras.
Nem sequer explicava se estas eram mamíferos ou aves ou qualquer desses bichos que há na zoologia.
Apre!
Isso não deve ser jornalismo.
Aliás, eu tenho para mim, que até do ponto de vista lá das manias deles, isso não deve resultar.
Quer dizer, nem mesmo para efeitos de denúncia à Policia ou assim, não é?
A não ser que haja qualquer código que a gente não sabe.
Um código só para os homens bons...
Mas então eu quero saber!
Não, não deve ser isso.
São mas é como o Sr. José, que era palerma e em noites de luar, lá na quinta, punha-se a dar tiros com uma caçadeira.
Para o ar.
Contra os inimigos.
Gouvêa Lemos
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