O tema da escrita em
Memória Consentida de Rui Knopfli
Introdução
Memória Consentida, colectânea de poesia, em língua portuguesa, que abrange os anos que vão de 1959 a 1979, comporta material bastante para propor uma leitura não disciplinada por indicações exteriores de estilo. A par da dificuldade confessada dos críticos em situar esta produção poética, é o autor quem, numa condição de autoconsciência, em duas artes poéticas e vários poemas de idêntica função, reflecte sobre a sua escrita e constrói a ponte que o coloca no mundo.
O texto que agora se apresenta articula os aspectos relevantes sobre o fenómeno da escrita em Rui Knopfli, numa atitude de cooperação, ou, se quisermos, de declaração, possível, da sua presença.
Sobre um poeta que assume o fingimento e o jogo da criação poética resulta, porventura, uma leitura analítica «que não exclui uma subjectividade»[1], isto é dizer, que solicita um encontro fecundo de fruição, próprio de uma escrita crítica e dialogante tão ao sabor de Knopfli.
O «respirar» poético e a escrita como um labor oficinal.
Rui Knopfli trata poeticamente o duplo processo de insuflação poética e de fixação na matriz, ora queixando-se que «perdeu um verso largo, / enxuto e musical» ora reconhecendo que a poesia é também um ofício:
[...] Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingénuo e fresco desse riso.
(p. 199)
Metaforicamente arisco e difícil – domesticável, domesticado?
Quando o poeta vê no verso que escreveu o seu «retrato moral», exposto involuntariamente (cf. «Amor das palavras», p. 41) é porque, de algum modo, o acto de escrita o ultrapassou. As palavras, escreve,
«juntas transcendem-se,
há algo de íntimo,
coeso e secreto
nelas.»
Ao «Aprendiz na Oficina da Poesia» (p. 108), aconselha a tomar uma atitude expectante, sem nada de buscas ansiosas, sem violentações rítmicas e rimáticas.
Memória Consentida de Rui Knopfli
Introdução
Memória Consentida, colectânea de poesia, em língua portuguesa, que abrange os anos que vão de 1959 a 1979, comporta material bastante para propor uma leitura não disciplinada por indicações exteriores de estilo. A par da dificuldade confessada dos críticos em situar esta produção poética, é o autor quem, numa condição de autoconsciência, em duas artes poéticas e vários poemas de idêntica função, reflecte sobre a sua escrita e constrói a ponte que o coloca no mundo.
O texto que agora se apresenta articula os aspectos relevantes sobre o fenómeno da escrita em Rui Knopfli, numa atitude de cooperação, ou, se quisermos, de declaração, possível, da sua presença.
Sobre um poeta que assume o fingimento e o jogo da criação poética resulta, porventura, uma leitura analítica «que não exclui uma subjectividade»[1], isto é dizer, que solicita um encontro fecundo de fruição, próprio de uma escrita crítica e dialogante tão ao sabor de Knopfli.
O «respirar» poético e a escrita como um labor oficinal.
Rui Knopfli trata poeticamente o duplo processo de insuflação poética e de fixação na matriz, ora queixando-se que «perdeu um verso largo, / enxuto e musical» ora reconhecendo que a poesia é também um ofício:
[...] Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingénuo e fresco desse riso.
(p. 199)
Metaforicamente arisco e difícil – domesticável, domesticado?
Quando o poeta vê no verso que escreveu o seu «retrato moral», exposto involuntariamente (cf. «Amor das palavras», p. 41) é porque, de algum modo, o acto de escrita o ultrapassou. As palavras, escreve,
«juntas transcendem-se,
há algo de íntimo,
coeso e secreto
nelas.»
Ao «Aprendiz na Oficina da Poesia» (p. 108), aconselha a tomar uma atitude expectante, sem nada de buscas ansiosas, sem violentações rítmicas e rimáticas.
Se o aprendiz esperar que as palavras germinem em si, então, cairão «maduras», qual um fruto, e «prenhes de significado». Contudo, se «o dito tempo exceder o tempo / que se achou ser justo esperar» – sugere o poeta em «Ars Poética 63», p. 183 – então, deve arriscar por começar.
Em «Ofício Novo» (p. 110), a poesia anima-se, agindo por si própria: «abre os olhos», cansa-se de um mundo de «sonho» e «refaz-se».
Com ela, o poeta também.
Não é de agora a enunciação do duplo fenómeno da escrita.
Já António Ferreira, no século XVI, defendia que o tempo favorece o espírito crítico e o possível retoque do texto escrito.
A reedição, num só volume, de obras publicadas ao longo de vinte anos deu a Knopfli a oportunidade de usar, sobre o corpus textual, a lima do poeta.
Face à intenção de excluir textos que se lhe «afiguravam de qualidade inferior», solicitou um parecer sobre o critério seguido a Eugénio Lisboa que se pronunciou «em favor de que se mantivessem alguns textos previamente suprimidos porque entendia, no caso vertente, que aos juízos qualitativos se deveriam sobrepor os que concorressem para a delimitação do espaço geográfico, temporal e espiritual».
Esta nota do autor, que antecede a colectânea, justifica, a meu ver, o título, Memória Consentida.
Para Knopfli, o jorro poético, por si só, não constitui a arte de escrever, pois é trabalhado, requer atenção, amor e gosto pela sua (re)elaboração.
Sem colocar em causa a autenticidade, o poeta domestica o «verso arisco e difícil» (p. 189) que se cumpre «lenta e dolorosamente» (p. 203) até à «calma das superfícies» (p. 107).
Em Mangas Verdes com Sal, livro publicado em 1969, a palavra «oficina» ocorre duas vezes associada à ideia do labor poético, assim enunciado:
«eu trabalho, dura e dificilmente,
a madeira rija dos meus versos
sílaba a sílaba, palavra a palavra»
(p. 183)
Resulta deste processo, segundo Luís de Sousa Rebelo, uma «linguagem despojada que acompanha o frio desnudamento da emoção e a refreia» (in «Prefácio» a Memória Consentida, p. 10).
O gosto pelas palavras e o seu valor.
Constitui a vigilância de fronteiras o gosto que o poeta tem pelas palavras e pelo seu valor. Aliás, di-lo de uma forma incomum no primeiro livro publicado, O País dos Outros, em 1959:
«Amo todas as palavras, mesmo as mais difíceis
que só vêm no dicionário»
porque têm uma função esclarecedora:
«o dicionário ensinou-me mais um atributo
para o sabor dos teus lábios.
São doces como sericaia.
Faz-me pensar ainda se a tua beleza não será
Comparável à das huris prometidas.
No dicionário aprendi que o meu verso é
Por vezes fabordão e sesquipedal.»
e uma função crítica:
«O dicionário, as palavras, irritam muita gente»
(p. 49)
Em O Escriba Acocorado, publicado em 1978, há a afirmação da língua (portuguesa) como pátria única. À perda do espaço amado impõe-se a palavra. Agora, diz o poeta:
«[...] se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.»
(p. 364).
Contudo, «na pátria-língua não há apaziguante enraizamento, mas um revolver cada vez menos partilhável» (PEREIRA, p. 405), pois, até os
«amigos de outrora
diluem-se para fora da linguagem»
(p. 378)
E a escrita parece-lhe «morosa, pertinaz» (p. 385):
«Escrevo sentado sob a fraca luz que do alto
desce. Tempo houve, outrora, em que as palavras,
vertiginosa enxurrada, me acudiam desenvoltas
à memória. Escrevo sobre a dura pedra do tempo
mal distintos, mas aciculados sinais.»
(p. 384)
Dialogismo: influência, crítica e singularidade.
O dialogismo textual é algo a que o escritor não se subtrai, antes, cultiva o confronto com textos alheios como forma de apurar e afirmar a sua própria escrita.
A polifonia textual em Memória Consentida «vai da admiração respeitosa ao ridículo mordaz» (HUTCHEON, p. 28), da agradável activação da (nossa) leitura de Pessoa ou Jorge de Sena (quando aqui se referiu à pátria-língua) ao eventual conluio em protesto contra os excessos concretistas.
A circunstância de o discurso literário ser intertextual não retira a singularidade do autor, porque «assinala a intersecção da criação e da recriação, da invenção e da crítica» (HUTCHEON, p.128).
É nesta qualidade que Rui Knopfli revela ser um leitor ávido e crítico,
«Que, em suma,
roubando aos ricos para dar a este pobre,
sou o Robin Wood dos Parnasos e das Pasárgadas»
(p. 202)
Nestes versos redige a sua «Contrição», ou melhor, pseudo-contrição, já que celebrizam a reacção do poeta a um crítico literário obcecado por lhe detectar influências:
«Felizmente, é pouco lido o detractor de meus versos,
senão saberia que também furto em Vinícius,
Eliot, Robert Lowell, Wilfred Owen [...]»
e tantos outros do mundo da literatura, do cinema, da pintura e demais artes.
Fernando J. B. Martinho, num importante estudo sobre a influência d’«A América na poesia de Rui Knopfli», deixa assente que «os autores americanos citados em epígrafe ou no corpo dos poemas [...] ajudam apenas a desenhar, dentro das literaturas de “matriz europeia”, e particularmente das de língua inglesa, em cuja “continuidade” a poesia de Knopfli se situa, o mapa de leituras, de interesses, de obsessões por que se ajusta o horizonte intertextual do autor de Mangas Verdes com Sal» (p. 137).
«Pessoa Revisited», de 1959, é um poema sintomático da escrita pós-pessoana do panorama português.
Reflecte a relação fantasmática dos nossos escritores com o poeta maior, quer no sentido de o tomar por modelo quer com o propósito de dele se libertar, negando-o ou fazendo por ignorá-lo.
Sem embaraço, em várias das suas composições, Knopfli revisita-o, mas nesta em particular interpela-o directamente, não só em seu nome como também em suposição de uma colectividade:
«Alguma vez todos os poetas
se encontram contigo.
Mesmo os menores como eu
[...]
hoje nos limitamos a entrar
[...]
e visitamo-te com secreta religiosidade.
[...]
em vão te buscamos,
em vão rezam por ti compridas laudas
em jornais a ressumar cultura,
em vão te imitamos[...]»
(pp. 90-91)
Dentre os autores que não se envergonha de furtar (termo utilizado em «Contrição») há um que é epigrafado duas vezes e cuja poesia foi traduzida para português por Rui Knopfli.
«Alguma vez todos os poetas
se encontram contigo.
Mesmo os menores como eu
[...]
hoje nos limitamos a entrar
[...]
e visitamo-te com secreta religiosidade.
[...]
em vão te buscamos,
em vão rezam por ti compridas laudas
em jornais a ressumar cultura,
em vão te imitamos[...]»
(pp. 90-91)
Dentre os autores que não se envergonha de furtar (termo utilizado em «Contrição») há um que é epigrafado duas vezes e cuja poesia foi traduzida para português por Rui Knopfli.
Trata-se de T. S. Eliot, importante pela concepção de tradição que nos legou na sua obra Tradition and Individual Talent, de 1919. Luís de Sousa Rebelo entende que esse conceito continua a ser o mais adequado no enquadramento de Memória Consentida.
A ideia de continuidade cultural e de «sentido histórico» compreende uma percepção não só do passado, mas também da sua presença, isto é, toda a literatura «possui uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea»
A epígrafe de Eliot escolhida para o livro Máquina de Areia (1964) dá conta exactamente desta linha de força tão em voga na literatura contemporânea:
«Time present and time past
Are both perhaps present in time future,
And time future contained in time past.
If all time is eternally present
All time is unredeemable.»
(in Burnt Norton)
Neste contexto de leitura do passado, Linda Hutcheon lembra que «não é por acaso que Jencks decide mencionar T.S. Eliot, juntamente com o desejo pós-modernista de mudar a nossa maneira de ver o passado.
«Time present and time past
Are both perhaps present in time future,
And time future contained in time past.
If all time is eternally present
All time is unredeemable.»
(in Burnt Norton)
Neste contexto de leitura do passado, Linda Hutcheon lembra que «não é por acaso que Jencks decide mencionar T.S. Eliot, juntamente com o desejo pós-modernista de mudar a nossa maneira de ver o passado.
Tal como na poesia de Eliot, existe um alto grau de empenhamento do descodificador, combinado com um elevado grau de complexidade textual» (p. 146).
Com o mesmo à-vontade que Knopfli reconhece a sua dívida para com outros escritores, também critica outras escritas e proclama a sua singularidade.
Em Mangas Verdes Com Sal, o «Poemazinho concretista inspirado em João de Deus primeiro poeta dito, com vista aos leitores (adultos) das primeiras letras», da lavra de Knopfli, resulta da sua reacção aos excessos experimentalistas que proliferavam em publicações da época:
v i a u v a
v i a úvula
v i a vulva
fulva à viúva
viste uma ova
Poema a duas vozes, uma de construção concretista nos primeiros quatro versos e outra de escárnio, assim percebida por causa do diminutivo depreciativo que consta no longo título e que contamina toda a composição.
«Poemazinho» é, pois, a palavra chave fornecida pelo autor para que se possa decifrar a intenção crítica.
Não o vejo como exemplo de simples imitação, mas de uma versão irónica de transcontextualização ou de «paródia estilística», nas palavras de Linda Hutcheon.
Este tratamento paródico da escrita concretista manifesta a recusa de Knopfli em «seguir métodos fáceis, ou julgados como tais, contribui para distanciá-lo de uma crítica que é mais sensível à novidade e ao insólito do que a um discurso de identidade em permanente devir» que, afinal, é o seu (REBELO, p. 15).
Assim sendo, a poesia surge como uma «Poesia Sem Mais Nada» (p. 203) e ele um «poeta-sem-mais-nada» que se demarca de seu «irmão», o «poeta demagógico».
O primeiro compõe o verso com «pequenos materiais», «carinho», «minúcia», «subtil humildade»; «estende o braço / da fraternidade / no abraço / que vai do coração da humanidade», porque, de resto, o poeta de Memória Consentida nunca escreveu «versos que não fossem de amor» (p. 185):
«Na oficina escura do poeta-
-sem-mais-nada o verso cumpre-se
lenta e dolorosamente,
mas suas arestas vivas,
sua dureza de diamante
insinuam-se teimosamente
e vão, sempre com ar discreto,
minando os poderes constituídos.»
(p. 203)
Não obtém simpatia o poeta demagógico por parte de Rui Knopfli, antes, é referido com ironia acutilante:
«Rola e estraleja farto o trovão
no verso chocalhante do poeta
demagógico e o público aplaude
comovido.»
(idem)
Não devemos confundir o poeta demagógico com o conhecido poeta fingidor. Este, qual poeta-sem-mais-nada, usa as palavras como forma de se cumprir e de se conhecer. «O Poeta é um Fingidor» encima um poema que merece ser citado por inteiro:
Entreteço palavras
na malha áspera destes versos
e a tessitura triste que faço
mais esmorece no azul baço
do papel. Entristeço então
a alma numa renda miúda
e apertada de ponto incerto
e complicado. Estabeleço assim
dois mundos convergentes:
A textura entristecida dos versos
e a tristeza entretecida da alma.
E logo esqueço onde tudo isto
teve começo:
Se de entristecer palavras,
se de entretecer sentimentos,
se de constranger a alma,
se de contristar palavras:
se me contristei constrangendo,
se me constrangi contristando.
Sei que me contristo entretecendo
E me entreteço de tristeza.
(p. 212)
O poeta joga com as palavras (experimenta-as?), implicando-se, isto é, jogando-se também. Os seus versos são, como escreve noutra composição, uma «Ginástica Aplicada» (p. 186):
«Meu verso cínico é minha terapêutica
e minha ginástica [...]
Há um sorriso discreto em minha segurança.
[...] meu verso,
como de vós, ri-se de mim em ar de troça».
O discurso analítico de «Ars Poética 66», que legitima o olhar para outros poemas como tendo o mesmo sujeito poético, serve tanto o processo de autognose do autor como fá-lo intervir directamente no nosso processo de leitura:
«os meus versos nem sempre são
aquilo que parecem e nunca
dizem o que parece estarem a dizer»
Estrofes adiante, sarcasticamente:
«No essencial, porém, os meus versos
não têm ambição maior do que esta:
A de serem os versos
de um menino da cidade,
vértice minúsculo no polígono
do betão, do gin & tonic,
do volante Nardi e do asfalto.
Realmente pouco importa
que para além do polígono,
da malha apertada das palavras
e do meu perfil
agudo de pássaro curioso
haja paisagens só perceptíveis aos olhos
de quem quiser olhar-me bem nos olhos
que só são duros por pudor e ternura.»
(pp. 230-232)
No essencial, porém, os seus versos são os de um moçambicano na Europa e os de um europeu em Moçambique. Um euromoçambicano com o «desejo de comunicar»:
«Escrevo-te estas palavras
sabendo que as não lerás.
Entanto, o desejo de comunicar
é maior do que essa certeza.»
(p. 129)
Aqui, o poeta pensa o desejo de comunicar.
«Na oficina escura do poeta-
-sem-mais-nada o verso cumpre-se
lenta e dolorosamente,
mas suas arestas vivas,
sua dureza de diamante
insinuam-se teimosamente
e vão, sempre com ar discreto,
minando os poderes constituídos.»
(p. 203)
Não obtém simpatia o poeta demagógico por parte de Rui Knopfli, antes, é referido com ironia acutilante:
«Rola e estraleja farto o trovão
no verso chocalhante do poeta
demagógico e o público aplaude
comovido.»
(idem)
Não devemos confundir o poeta demagógico com o conhecido poeta fingidor. Este, qual poeta-sem-mais-nada, usa as palavras como forma de se cumprir e de se conhecer. «O Poeta é um Fingidor» encima um poema que merece ser citado por inteiro:
Entreteço palavras
na malha áspera destes versos
e a tessitura triste que faço
mais esmorece no azul baço
do papel. Entristeço então
a alma numa renda miúda
e apertada de ponto incerto
e complicado. Estabeleço assim
dois mundos convergentes:
A textura entristecida dos versos
e a tristeza entretecida da alma.
E logo esqueço onde tudo isto
teve começo:
Se de entristecer palavras,
se de entretecer sentimentos,
se de constranger a alma,
se de contristar palavras:
se me contristei constrangendo,
se me constrangi contristando.
Sei que me contristo entretecendo
E me entreteço de tristeza.
(p. 212)
O poeta joga com as palavras (experimenta-as?), implicando-se, isto é, jogando-se também. Os seus versos são, como escreve noutra composição, uma «Ginástica Aplicada» (p. 186):
«Meu verso cínico é minha terapêutica
e minha ginástica [...]
Há um sorriso discreto em minha segurança.
[...] meu verso,
como de vós, ri-se de mim em ar de troça».
O discurso analítico de «Ars Poética 66», que legitima o olhar para outros poemas como tendo o mesmo sujeito poético, serve tanto o processo de autognose do autor como fá-lo intervir directamente no nosso processo de leitura:
«os meus versos nem sempre são
aquilo que parecem e nunca
dizem o que parece estarem a dizer»
Estrofes adiante, sarcasticamente:
«No essencial, porém, os meus versos
não têm ambição maior do que esta:
A de serem os versos
de um menino da cidade,
vértice minúsculo no polígono
do betão, do gin & tonic,
do volante Nardi e do asfalto.
Realmente pouco importa
que para além do polígono,
da malha apertada das palavras
e do meu perfil
agudo de pássaro curioso
haja paisagens só perceptíveis aos olhos
de quem quiser olhar-me bem nos olhos
que só são duros por pudor e ternura.»
(pp. 230-232)
No essencial, porém, os seus versos são os de um moçambicano na Europa e os de um europeu em Moçambique. Um euromoçambicano com o «desejo de comunicar»:
«Escrevo-te estas palavras
sabendo que as não lerás.
Entanto, o desejo de comunicar
é maior do que essa certeza.»
(p. 129)
Aqui, o poeta pensa o desejo de comunicar.
É algo mais que o lugar comum de que toda a escrita é, em última instância, comunicação. São versos «A Uma Criança Longe» que se revelam, conscientemente, como um apelo sem resposta.
No entanto, os mesmos versos tocam a ausência, assim como nós nos aproximamos do poeta, estando ele «longe».
Deixou ele, em «Testamento» (p. 46), as seguintes palavras: «[...] ecoo inteiro na força do meu grito.»
Ficará, porventura, para a «Posteridade» em seus «trinta leitores», mas, ironia do destino, prevê:
«meu nome começará aparecendo
nas selectas e, para tédio
de mestres e meninos, far-se-ão
edições escolares de meus livros.
Nessa altura estarei esquecido.»
(p. 207)
Conclusão
Amante das palavras, o poeta, aturada e pacientemente, espera que germinem em si para artisticamente colhê-las e colocá-las na matriz.
«meu nome começará aparecendo
nas selectas e, para tédio
de mestres e meninos, far-se-ão
edições escolares de meus livros.
Nessa altura estarei esquecido.»
(p. 207)
Conclusão
Amante das palavras, o poeta, aturada e pacientemente, espera que germinem em si para artisticamente colhê-las e colocá-las na matriz.
Desta emergência dificultosa da palavra procede a consciência crítica de que a superfície calma do poema é inscrita sobre tons aflitivos e silêncios subaquáticos.
Ao desenho sóbrio do sujeito, cerebral, mas em conflito com o tempo, soma-se a característica faculdade de amar «em retórica discursiva» (p.77).
A metapoética e a interacção de diversos discursos em Memória Consentida ao mesmo tempo que servem o processo de autognose do autor encenam outras presenças entre as quais se inclui a do leitor.
Bibliografia
HUTCHEON, Linda, Uma Teoria da Paródia. Ensinamentos das Formas de Arte do Século XX, Lisboa, Edições 70, 1989.
KNOPFLI, Rui, Memória Consentida. 20 Anos de Poesia 1959/1979, Lisboa, I.N.-C.M., 1982.
MARTINHO, Fernando J. B., «A América na poesia de Rui Knopfli» in Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Lisboa, F.C. Gulbenkian, 1987, pp.119-137.
PEREIRA, José Carlos Seabra, «Flores, árvores e frutos na poesia de Rui Knopfli: uma faceta da expressão da identidade individual no contraponto de Heimat e de desenraizamento» in Les Littératures Africaines de Langue Portugaise, Paris, F.C. Gulbenkian, 1985, pp. 397-406.
REBELO, Luís de Sousa Rebelo, «Prefácio» in Memória Consentida. 20 Anos de Poesia 1959/1979, Lisboa, IN-CM, 1982.
José Maria Aguiar Carreiro
Texto publicado como título «Memória Consentida» in Informar – Revista de Acção Educativa nº 26, Armando Dutra (dir.), Ponta Delgada, edição do Centro de Apoio Tecnológico à Educação, Maio/ Agosto de 1998, pp.63-68.
Lembro as oportunas e favoráveis palavras de Eduardo Prado Coelho que apresentam o ensaio de Helena Malheiro sobre Os Amantes ou a arte da novela em David Mourão-Ferreira, IN-CM, 1984.
«Conheça-me a mim mesmo: siga a vea / Natural, não forçada [...]» (in Poemas Lusitanos, vol. II, p. 105, colecção Clássicos Sá da Costa); «Deixa só madurar o doce fruito / Um pouco: deixa a lima contentar-se: / Inventa e escolhe então o melhor de muito» (idem, p. 110).
T.S. Eliot, Ensaios de Doutrina Crítica, cit. por REBELO, p. 15.
A filha – sabêmo-lo através dos elementos paratextuais.
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